um carro a menos

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Há 1,47 bilhão de automóveis no mundo atualmente, segundo estimativas. E o número segue crescendo: a produção mundial em 2023 foi de quase 100 milhões de unidades, 10% maior que no ano anterior. Gente do mercado costuma comemorar esse tipo de resultado, mas para quem se preocupa com a deterioração urbana gerada por esse produto de consumo, o dado não tem a menor graça.

E o pior é que esses objetos tendem a permanecer sobre a face da Terra mesmo quando não prestam mais para nada. Os ferros-velhos, como vemos geralmente em regiões periféricas das cidades brasileiras, parecem não ajudar muito. Dá a impressão de que aqueles veículos ficarão ali eternamente, como em um aterro sanitário, cujo destino é um dia ser enterrado, receber cobertura vegetal e virar um estranho morro.

É alentadora a ideia de que um automóvel possa deixar de existir fisicamente. Aquele raio desmaterializante de filmes de ficção científica seria a solução ideal, mas infelizmente isso ainda não está disponível.

Para que esses resíduos possam deixar de existir em uma velocidade minimamente comparável à de sua produção, é necessário um sistema organizado e gerido com finalidade pública. Exemplo disso existe na França, de forma regulamentada em sua legislação ambiental.

Lá existem os centros de Veículos Fora de Uso (VHU, do original em francês véhicules hors d’usage). Sua principal função é prestar à sociedade, de forma gratuita, o serviço de destruição de automóveis, fornecendo ao ex-proprietário um certificado de que seu veículo deixou de existir. Esse certificado será útil ao ex-proprietário em algumas situações práticas, como por exemplo a obtenção de incentivo para a troca de um carro movido a combustível por um elétrico ou uma bicicleta.

Repare que esse tipo de incentivo só faz sentido, em seu propósito ambiental, se houver de fato a substituição – no mundo, não só na garagem proprietário – do veículo muito poluente por outro bem menos ou nada poluente. Assim, só ganha o incentivo quem demonstrar, com documento oficial, que o veículo poluente foi mesmo destruído.

Foto: Luis Quintero

Existe, sim, por parte deste blogue, um prazer especial com a ideia de que um automóvel possa desaparecer da face da terra, e isso explica parcialmente o uso do itálico, nesta matéria, em palavras como destruído. Além disso, nos informativos governamentais sobre o assunto, a palavra destruir (détruire, em francês) e suas derivadas são usadas fartamente. Para além das particularidades do uso das palavras no idioma francês, isso torna a leitura desses materiais bastante prazerosa.

Esses centros são monitorados pelo governo e precisam estar devidamente documentados para operar. Há na França em torno de 1700 centros VHU e 60 trituradores autorizados a fazer a desmontagem desses automóveis e emitir certificados a seus antigos usuários. Cerca de 1,3 milhão de veículos fora de uso são processados anualmente por essa rede. A idade média desses veículos é 19 anos de uso.

“Os Veículos Fora de Uso são dejetos perigosos até que sejam completamente descontaminados” (tradução e grifo nosso, com as ressalvas acima sobre uso linguístico). A frase se encontra na página informativa sobre VHU, que também apresenta a noção de Responsabilidade Ampliada dos Produtores (REP, responsabilité élargie des producteurs no original francês).

Segundo esse conceito, “os fabricantes de veículos são obrigados a recolher gratuitamente os veículos em fim de vida, a pedido do seu titular (…) e depois entregá-los a um centro VHU, o qual deve garantir as devidas providências, qualquer que seja a sua marca. Esta regra também se aplica a veículos ‘abandonados’”.

Para além da França, as diretivas europeias também orientam a matéria, estabelecendo inclusive metas progressivas que os países devem alcançar na destinação dos materiais dos veículos desmanchados. Por exemplo, para automóveis particulares, há metas de reutilização das peças: 8,5% em 2024, 10% em 2026 e 16% em 2028. O gás altamente poluente do sistema de ar condicionado dos veículos também está sujeito a metas de recuperação: 60g até 2025, e 100g até 2028.

Por aqui há também um mercado de peças usadas, e sabemos que ele acaba se confundindo com a cadeia de comércio de veículos roubados, por meio dos estabelecimentos conhecidos como “desmanches”. Quando esses estabelecimentos fazem parte de uma rede de serviço monitorada pelo poder público, fica mais fácil controlar possíveis descaminhos.

De fato é preciso certa coragem para entregar um bem caro a um centro VHU, para que ele seja destruído. Mesmo desconsiderando apegos e outras questões afetivas – que tendem a ser maiores em povos cordiais – e levando em conta somente o valor material do bem, a alternativa de vender o carro velho continuará existindo enquanto houver mercado para isso, ou seja, gente disposta a comprá-lo. Às vezes, o certificado de destruição do veículo vale dinheiro, como no caso do incentivo mencionado, mas em muitos casos ele provavelmente não vale nada além do testemunho de que existe um carro a menos sobre a face da terra.

Quando são muito velhos, os veículos movidos a combustão se tornam ainda mais poluentes. É isso que justifica iniciativas de restringir a circulação desses veículos, que já existem em outros países e também no Brasil. Havendo essas restrições, o mercado para esse tipo de máquina fumacenta com muitos anos de uso tende a deixar de existir. E aí, encaminhar o veículo para destruição passa a ser uma alternativa a se considerar.

Permitir que um veículo continue a circular e a ter valor de mercado quando já deveria ter sido descartado é mais uma forma de externalizar o custo ambiental gerado por esse meio de transporte. A restrição de circulação, que declara o fim da vida útil desse produto nocivo, apenas devolve ao proprietário um ônus que deveria caber a ele, mas que ele consegue jogar para fora quando tem a possibilidade da venda.

Terminar a vida em um atestado é até que uma forma um tanto honrosa, equiparável à condição dos humanos, para uma máquina que já cumpriu sua missão sobre a terra – o que talvez até satisfaça em certa medida, para os mais apegados, o vácuo afetivo deixado pela perda.

Assumindo que o sistema funcione, e que cada certificado de destruição emitido por um centro VHU represente de fato um carro a menos, parece um caminho interessante para organizar o controle populacional dessas máquinas poluentes.

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