Finalmente, o dia de entrar pela roça. Minha estrada, a MG-295, sai de Munhoz já sem asfalto, estrada de chão. Sol brilhando forte, paisagem aberta, os vales ficando lá em baixo conforme eu subia. Máquinas rurais manobrando, trabalhadores paravam para olhar aquele maluco pedalando devagar serra acima.
No fim de uma dessas ladeiras um pensamento me baqueou. Eu havia esquecido meu pão com queijo no frigobar da pousada.
Pode parecer bobeira, mas isso me deixou arrasado. Era o alimento da minha jornada. Eu só não estava completamente ferrado ali porque tinha a sobra da pizza da noite anterior. Mas a tristeza ia além do alimento. Era o descuido. O lanche de queijo preparado com tanta intenção, no pão que amassei para esta viagem, ficaria estragando naquele frigobar e talvez acabasse no lixo. Que final infame!
Voltar para buscar não faria o menor sentido. Segui em frente torcendo para que alguém o encontrasse e comesse, e essa possibilidade me acalmou um pouco.
Quando planejei a viagem, eu estava especialmente curioso por explorar esse trecho entre Munhoz e Senador Amaral. Queria saber o que se faz naquelas terras. Eu imaginava um cenário bucólico, como o que existe em outras roças de Minas bem próximas dali. Mas vi sítios e fazendas bastante capitalizados: grandes galpões, depósitos, máquinas. Paisagens assim, com cara de produção industrial, não me agradam tanto. Prefiro ver vacas, milharais e casas antigas e simples. Mais tarde, vim a saber que na região se produz muito morango e flores, duas atividades que empregam muito agrotóxico.
Pouco adiante, num trecho bem alto, eu estimava estar próximo do Cima Coppi, o ponto mais alto da viagem, que assim batizei em referência ao Giro d’Italia. Pelo planejamento, o Cima Coppi estaria mais ou menos no km 21 do terceiro dia. Acontece que eu estava numa estrada diferente da que planejei, e só viria a saber disso algumas horas depois. Portanto nenhum cálculo meu poderia me indicar aquele ponto.
Só sei que de repente a paisagem se abriu e eu resolvi parar. Fiz diversas fotos para juntar numa panorâmica. Dias depois, olhando a altimetria da estrada que percorri de fato, descobri que aquele lugar era mesmo o Cima Coppi.

Esse não foi bem um daqueles momentos de certeza absoluta, pois neles você sabe e sabe que sabe, é um saber sólido. Ali foi um momento de forte intuição, que é um saber sutil. Apenas li o toque que a estrada estava me dando. Bom, na verdade a certeza absoluta também vem daí, um toque que vem da estrada. Uai, será que é tudo a mesma coisa?
Pouco adiante, num bairro rural, parei em frente a uma casa para comer a pizza. No rádio do carro, um rapaz escutava música massificada, que em nada combinava com minha roça mineira idealizada. Trocamos frases esporádicas. A certa altura ele perguntou de onde eu vinha, pra onde eu ia. Contei que estava de férias, viajando de bicicleta. Ele não achou nem um pouco interessante e comentou com algum desgosto: “Vish, que férias são essas?”. Engraçado como as pessoas podem querer coisas tão diferentes.
Sítios e casas começaram a ficar mais frequentes, e logo a estrada de terra acabou no asfalto. Mais uns poucos quilômetros, e eu entrei em Senador Amaral.

O lugar me pareceu agradável, porém sem nada de especial. Segui indicações que me deram e achei a pousada em cima do restaurante. Estava fechada. A dona foi a Bragança, só volta no fim da tarde. A moça do restaurante ainda tentou contato com ela, mas pelo jeito a dona não queria hóspede.
Tarde ensolarada, com o ar bastante frio. Eu já estava começando a perder calor. Lambuzado de protetor solar, suor e poeira da estrada, eu precisava imediatamente de um banho para poder me agasalhar.
Achei uma alternativa, um quartinho atrás do posto de gasolina na saída da cidade. Lugar frio, meio úmido e com forte cheiro de mofo. Pior de tudo, um lugar triste. Aquela cidade não estava me acolhendo. Tive mais uma certeza absoluta: não era para eu ficar em Senador Amaral.
A próxima cidade do roteiro era Cambuí, uns 20km adiante. Cidade um pouco maior, mas que eu conhecia bem. Bastava descer a Serra do Cabral.
Me joguei naquele mar de montanhas, buscando equilibrar momentos de contemplação, olhando para todos os lados, com os necessários momentos de soltar os freios para sentir o vento na cara. Sem ter que fazer força, cheguei a passar frio. Seria mais frio ainda na manhã seguinte, como estava planejado. Ou seja, seguir viagem foi a melhor coisa que fiz.
Parei no viaduto sobre a Fernão Dias para olhar um pouco, de outra perspectiva, essa estrada que é meu caminho da roça, tão habitual. Num hotel simpático, consegui um quarto aconchegante com vista para a serra que eu acabava de descer.

Jantei filé mignon com arroz e feijão, tudo que eu precisava. Na volta do mercado, entrei por um beco e descobri uma parte bem antiga da cidade, casas cor de terra. Numa praça simpática vi crianças e adolescentes vivendo livres na rua, em pleno horário nobre.
Antes de dormir, na janela, me esbaldei naquela brisa fria e perfumada. Agradeci muitas e muitas vezes. Cambuí me acolheu, dizendo isso em voz alta.
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