Uma grande diversidade de aparelhos motorizados vem invadindo a rede cicloviária das cidades. Transportam pessoas e ostentam atitudes quanto à forma de se deslocar e usar o espaço da cidade.
Tem bicicletas que os usuários não precisam pedalar. Elas até são equipadas com pedais, mas eles nunca ou quase nunca são usados. Portanto são motos elétricas. Os pedais ali são meros elementos do desenho, referências simbólicas às origens, assim como espigas de trigo na embalagem do pão e na fachada da padaria. Se a pessoa pode apenas apertar um botãozinho, afinal tem pressa e não quer suar a roupa, pra que ela precisa pedalar?
Parentes próximas das motos elétricas, tem também as lambretas elétricas, ou scooters, como se diz em português. Como não fazem barulho nem soltam fumaça, em vez de continuar andando pela rua, como suas parentes movidas a gasolina, conseguiram invadir as ciclovias e ciclofaixas sem que ninguém percebesse nada de estranho. Um pouco mais dignas que as motos elétricas, não trazem pedais, ao menos não tentam enganar ninguém. Mas nem precisariam, como as motos elétricas bem demonstram. O deslumbramento provocado pela tecnologia cega grande parte dos humanos.
Aí tem os patinetes elétricos. Umas gracinhas, coloridos, cheios de luzinhas. Basta a pessoa ficar em pé, apertar um botãozinho, rezar para nada inesperado se materializar à sua frente e se concentrar para não fazer cara de idiota. Vivemos já uma segunda ou terceira onda de infestação desses brinquedos pelas ciclovias e calçadas da cidade.
Tem também monociclos, tem bicicletas envenenadas com um irritante e fedido motor a combustão, tem umas coisas compactas com guidão e rodinhas mas que nem nome têm. Talvez as leis de trânsito ofereçam denominações e categorias para entender essa diversidade toda, mas isso é o que menos importa aqui.
Ao contrário das bicicletas, esses aparelhos todos funcionam pelo acionamento de um acelerador, assim como automóveis, caminhões, aviões e barcos a motor. São veículos motorizados, ainda que consigam se disfarçar bem em meio à mobilidade ativa.
Tentam conviver com as pessoas, mas dificilmente conseguem, máquinas que são. E não teria por que ser diferente: se eles têm acelerador, tendem a ser utilizados da mesma maneira que automóveis e outros veículos motorizados, não importa que membro do corpo humano faça o seu acionamento.
Naturalmente, as pessoas que utilizam esses veículos motorizados tendem a se comportar como motoristas. Aceleram, ultrapassam, resmungam, atropelam.
Há quem acredite que um dia será possível organizar isso, regulamentando categorias, criando limites de velocidade, controlando de alguma forma a potência desses produtos. Ho Ho Ho! Não damos conta de fiscalizar desrespeitos muito mais descarados, quem fará esse serviço nas ciclovias verdes e arborizadas da cidade? Gnomos? Enquanto esses aparelhos saírem das fábricas com a possibilidade de alcançar altas velocidades, haverá mercado interessado na experiência.
Afinal, se é possível pagar mais para chegar primeiro, haverá quem pague mais para chegar primeiro. Em nossa cultura deslumbrada por novos brinquedos, como se a vida fosse um eterno mês de natal, o dogma da liberdade de consumo está acima de ideais de segurança e de respeito mútuo.
Mesmo quando estivermos transitando pela infraestrutura que deveria ser dedicada ao transporte ativo, permanece o desafio de ficarmos atentos: os motoristas estão conseguindo invadir um espaço nosso, arduamente conquistado.