capitalismo de confinamento

Então o presidente da grande cervejaria chama o seu diretor de produção.

– Ô Ferreira, quero que você reduza nossos custos de produção em 75%.

– Mas…, senhor presidente, é impossível fazer isso sem uma piora sensível na qualidade do nosso produto.

– Não tem problema, isso não vai afetar as nossas vendas.

– Senhor, nossa cerveja vai ficar muito ruim. Os consumidores sentirão a diferença e vão preferir a concorrente.

– Claro que sentirão a diferença. Mas mesmo assim eles vão continuar bebendo a nossa cerveja. Nós os obrigaremos.

E assim, proliferam-se os bares que vendem somente produtos da Ambev (os chamados ‘parceiros Ambev’) e os bolsões de exclusividade no carnaval e outros eventos de rua.

Escrevi e publiquei esta historinha de ficção há alguns anos, revoltado com a agressividade e falta de escrúpulos dessa empresa ao lidar com seu público consumidor. Para compensar a ruindade do produto, adota-se uma estratégia mercadológica fascista: a eliminação física dos concorrentes.

Entre as ladainhas do capitalismo liberal, uma das mais conhecidas é a ideia da livre concorrência. Sempre que podem, porém, as corporações atuam de maneira totalitária e tratam os consumidores como gado. “Cliente bom é aquele que faz o que a gente quer”, esse é o seu verdadeiro pensamento, e fazem cada vez menos questão de disfarçar isso.

Um caso típico de capitalismo de confinamento é o da rede de restaurantes de estrada Graal, que faz acordos com as principais empresas de transportes para que seus ônibus façam as paradas durante as viagens somente em seus estabelecimentos. Quando as portas dos ônibus se abrem, ninguém precisa tanger a boiada, já que estamos no meio do nada e não há alternativas. Sem concorrência, a empresa está livre para praticar preços abusivos, impunemente. Os passageiros, famintos e entediados por horas e horas de viagem, agem como bons consumidores e pedem, sem reclamar, um misto frio que custa R$ 16,90 ou um pão de queijo por R$ 10,90. Ninguém se importa de fazer um prato pagando R$ 129,90 o quilo, nem de tomar um cafezinho de coador por R$ 9,90.

Algumas casas de espetáculos que têm contratos de exclusividade com empresas de bebidas chegam a impedir que as pessoas tragam sua própria garrafa de água na bolsa, para que na hora da sede sejam obrigadas a pagar o que eles quiserem por uma água mineral. Uma vez, numa dessas casas, um funcionário da segurança me abordou ordenando que eu descartasse minha garrafinha plástica. Quando eu contestei a arbitrariedade ele disse, ligeiramente constrangido, que se a minha garrafinha de água fosse da mesma marca da vendida ali no bar eu poderia continuar com ela sem problema.

E os bolsões de exclusividade em festas de rua seguem firmes. Só que aqui temos um problema adicional e bastante sério: estamos falando de espaços públicos.

O contrato de patrocínio entre a cervejaria e a prefeitura de São Paulo no carnaval de 2024, em sua cláusula 7.8., item “i”, novamente previu tal exclusividade de vendas. O contrato define também que a exclusividade é válida “no perímetro e nas proximidades do fluxo dos blocos”, critério um tanto impreciso, que acaba valendo para os locais de folia menores, sem isolamento físico nem controle de acesso.

Os agentes civis de “apoio à fiscalização” chegavam em vans e acompanhavam atentamente a folia do começo ao fim, prontos para agir em caso de necessidade. Foto: Dionizio Bueno.

Neste ano, o controle foi reforçado por agentes civis identificados como “apoio à fiscalização”. Pessoas comuns, sem enxoval de vigilantes ou policiais, identificadas apenas com coletes laranja e que, além de ajudar na dispersão do público no final da programação do dia – diminuindo a resistência dos foliões, ao serem igualmente gente do povo –, também ficavam fiscalizando os produtos vendidos pelos ambulantes. A Guarda Civil Metropolitana e a Polícia Militar estavam sempre ali para garantir a retaguarda.

Na seção do contrato que trata das obrigações da prefeitura, a cláusula 6.7. determina que cabe à contratante “Disponibilizar equipes de fiscalização do Contrato de Patrocínio com a especial finalidade de comprovar a efetividade das entregas pactuadas entre as partes”.

Houve pelo menos um caso, presenciado por este blogue, em que a folia foi perturbada por causa da exclusividade de marca. Os tais agentes civis e os guardas metropolitanos investiram contra um ambulante alegando, segundo testemunhas, que ele estava vendendo cerveja de marca diferente da patrocinadora.

Sob os protestos do público, o ambulante foi levado até a viatura e teve suas mercadorias apreendidas. Foto: Dionizio Bueno.

Tal atitude gerou revolta entre os foliões, dando início à confusão. Logo a bateria parou de tocar e a festa terminou mais cedo. Podemos supor que isso aconteceu diversas vezes por toda a cidade, durante este carnaval.

Temos portanto a situação em que um certo perímetro de espaço público passa, ainda que temporariamente, a ser território de exclusividade de uma corporação, que conta ainda com a força pública para garantir seus interesses privados.

Mais que transformar praças em shoppings, o capitalismo de confinamento transforma lugares públicos e privados em currais de consumidores.

Deixe um comentário