Sabemos bem que o isolamento de uma pessoa dentro da bolha de um automóvel favorece comportamentos individualistas. Isso é um fato autoevidente, e quem vive o cotidiano fora dessas armaduras, na condição de pedestre ou ciclista, constata isso com clareza. Mas a ciência necessita de demonstração, baseada em método. Pois então, aqui está um bom exemplo.
Um estudo feito em uma universidade alemã buscou examinar a relação entre o uso da bicicleta e um aspecto específico do comportamento social, que os autores chamam de “orientação para o bem comum”. Já adianto que, sim, eles encontraram correlação. É interessante conhecer como eles estruturaram a pesquisa e interpretaram os achados.
O artigo foi publicado em 2023 no periódico científico Journal of Environmental Psychology e usou bases de dados das pesquisas anuais de 2014 a 2019, feitas por um grande instituto alemão de estudos em ciências sociais, com amostras representativas da população geral do país.
Os autores primeiro repassam estudos anteriores que de alguma forma abordaram a orientação para o bem comum, observando que essa ideia contempla o respeito às regras básicas da sociedade, a disposição em ajudar os outros e a participação na vida social e política, incluindo o envolvimento em discussões públicas.
Então definem orientação para o bem comum como uma característica composta por quatro facetas: participação política, participação social em organizações, solidariedade de vizinhança e prestatividade entre vizinhos. A questão selecionada das bases de dados para medir participação política indagava se e com que frequência a pessoa havia tido, nos 12 meses anteriores, atitudes como entrar em contato com um político, assinar uma petição, participar de protesto, boicotar um produto, discutir política com amigos.
Quanto a participação social em organizações, a questão escolhida indagava sobre o envolvimento com entidades esportivas, recreativas, culturais ou religiosas, movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos, organizações estudantis ou de juventude, associações humanitárias ou filantrópicas.
A solidariedade de vizinhança foi aferida pelo grau de concordância com a afirmação “Sinto-me próximo das pessoas do bairro em que vivo”. E para avaliar a prestatividade entre vizinhos, a pergunta pedia que as pessoas avaliassem em que medida “As pessoas do meu bairro ajudam-se umas às outras”.
Para as quatro facetas definidas, os dados revelaram correlação positiva entre a opção por pedalar e esses comportamentos que compõem a orientação para o bem comum. Houve também uma correlação pequena mas significativa entre a frequência média pessoal de uso da bicicleta e esses comportamentos. O estudo controlou outras variáveis (propriedade da moradia, renda pessoal, nível de escolaridade e gênero), de forma a evitar que exercessem influência sobre os resultados. O uso de bicicleta foi a única variável que mostrou correlação positiva com os comportamentos relacionados ao bem comum. Os autores citam algumas pesquisas semelhantes, com conclusões que vão na mesma direção.
O estudo apresenta algumas possibilidades de conexão entre os dois fatos correlacionados. Em um primeiro nível de análise, observam que “o uso da bicicleta pode contribuir para a experiência direta do ambiente do bairro, o que pode motivar as pessoas a serem prestativas, a se envolverem na participação política e em organizações da sociedade”.
Então, ao se voltarem para os processos psicológicos possivelmente envolvidos nessa mediação, e com base em alguns trabalhos citados, apresentam uma hipótese bem interessante: confiança. A ideia central é que um nível mais elevado de confiança nos outros, atuando como elemento constitutivo para a cooperação, aumenta a disposição dos cidadãos em contribuírem para o bem comum, levando a uma orientação comunitária mais forte.
Essa hipótese leva a Jane Jacobs, com sua importantíssima obra Morte e Vida de Grandes Cidades, de 1961, referência essencial na reflexão sobre cidades para pessoas. Jacobs mostrou como a confiança social se forma a partir de pequenos e frequentes contatos casuais entre as pessoas no espaço público. Nesse convívio, a identidade social vai sendo construída de maneira compartilhada, com base no respeito e na confiança.
De forma alinhada com o que abordamos de diversas maneiras neste blogue, o estudo mostra que quem se desloca a pé ou de bicicleta, sem a mediação e a proteção de uma máquina, em contato direto com as paisagens urbana e humana, tem uma experiência imediata das condições em que a vida acontece. A partir dessa vivência mais intensa da realidade social, a orientação para o bem comum se concretiza nas diversas possibilidades de envolvimento à disposição desses atores sociais.
Os autores do estudo consideram brevemente a possibilidade de haver causalidade reversa: pessoas com maior envolvimento político ou disposição em ajudar os outros terem maior propensão a usar a bicicleta. Segundo eles, o modelo estatístico mostrou resultados menos significativos quando testado com a relação assim invertida, mas é concebível que o efeito exista nas duas direções.
A vida nas cidades, sobretudo em uma época em que os contatos entre pessoas têm migrado para meios digitais, tem sido marcada progressivamente por isolamento urbano e perda das estruturas sociais. Conforme a interpretação desenvolvida no artigo, os modais ativos de transporte aparecem como um alento na preservação das relações humanas. O estudo é específico para a bicicleta, mas não há porque ser diferente para o modal a pé, pelo menos considerando as interpretações apresentadas. E é inspirador pensar que, em contraste com o transporte individual motorizado, os modais ativos estimulam a restauração da confiança entre as pessoas.
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