Algumas teorias do urbanismo defendem que, no planejamento de uma cidade, deve haver um lugar para cada tipo de uso. Lugar de morar só serve para morar, e portanto não deve haver aí qualquer outro tipo de atividade. A expressão ‘zona estritamente residencial’ vem dessa ideia de cidade. Nos lugares para trabalhar, você encontra prédios e mais prédios de escritórios. Nas áreas de alimentação há padarias, restaurantes, bares, cafés, bistrôs. Há também as áreas comerciais, onde ficam estabelecimentos de todos os tipos, e as ruas passam o dia todo cheias de gente entrando e saindo das lojas.
Porém, quando termina o horário comercial, as lojas fecham e as ruas ficam completamente desertas. Pense em uma rua da sua cidade onde há somente lojas, porém nenhum bar de esquina que continue aberto para as pessoas jantarem ou tomarem alguma coisa depois do trabalho. À noite, não dá vontade de passar por esses lugares. Além disso, nesse tipo de cidade, como existe um bairro para cada coisa, as pessoas são obrigadas a fazer deslocamentos, às vezes longos, para quase tudo que não seja ficar em casa: comprar pão, trabalhar, comer fora, fazer compras.
Essa lógica de planejamento urbano foi diretamente criticada no livro Morte e Vida de Grandes Cidades, publicado em 1961 pela jornalista, escritora e ativista estadunidense Jane Jacobs.
Jane ganhou destaque ao organizar movimentos de resistência contra obras de reconfiguração urbana que destruiriam bairros que, mesmo sendo lugares de intensa vida comunitária, consolidada há décadas, eram considerados problemáticos pela visão higienista da administração municipal e de alguns grupos de interesse. Algumas dessas obras incluíam a construção de grandes avenidas em locais onde havia parques ou moradias.
O então prefeito, Robert Moses, era representante de uma concepção urbanística na qual as regiões da cidade eram comparadas a partes do corpo, as quais podiam ser saudáveis ou doentes. As áreas consideradas degradadas, por exibirem mazelas sociais, eram vistas como tecidos degenerados a serem extirpados da paisagem.
Em seu livro, Jane Jacobs apresenta e defende algumas diretrizes de planejamento urbano com a finalidade de fomentar a vivacidade dos bairros e cidades: usos mistos, alta densidade de ocupação, quadras curtas que facilitem os deslocamentos a pé, entre outras. As diretrizes buscam incentivar a presença das pessoas nas ruas e a interação entre elas.
Se a segurança pública era uma questão que estava (parece que de alguma forma sempre está) no centro das discussões sobre a cidade, Jane argumentava que um fator determinante para aumentar a segurança e coibir a violência são os olhos das ruas: pessoas passando, pessoas conversando nas calçadas, pessoas entrando e saindo dos estabelecimentos comerciais, pessoas observando a rua das janelas. Dia e noite.
Aqui está a importância dos usos mistos dos bairros em vez da ocupação especializada, defendida por muitos urbanistas. Em locais com uso diversificado, existe vida na rua praticamente o tempo todo. Logo cedo há muita gente indo para o trabalho, depois tem gente caminhando até o mercado para comprar algo, ou segurando uma criança pela mão para levá-la à escola, ou indo ao parque praticar algum esporte. À noite, findo o movimento dos trabalhadores voltando para casa, as ruas estarão ocupadas por aqueles que estão indo jantar fora, encontrar amigos em bares, ou estão voltando de um programa cultural.
Diversidade de usos anda junto de diversidade social. Jane Jacobs faz uma interessante defesa da presença de “estranhos”. No lugar do discurso da exclusividade que marca muitos bairros residenciais, buscando restringir a frequência local à presença dos nossos conhecidos, Jane exalta a presença de gente de outro lugar. Pessoas diferentes têm hábitos, agendas e interesses diferentes, portanto usam a cidade de maneira diferente. Isso contribui para que os estabelecimentos e os equipamentos urbanos sejam usados nos diversos horários, dia e noite, tornando as ruas mais seguras. “Quanto mais estranhos houver, mais divertida ela [a rua] será” (p. 41).
Episódios de violência são mais comuns em ruas desertas do que em locais povoados. Ruas exclusivamente residenciais produzem medo, e isso acaba levando a soluções privatistas como o fechamento de ruas, que eliminam definitivamente o caráter publico desses espaços urbanos.
Assim, Jane Jacobs propõe uma cidade que, literalmente, olha para as pessoas e as convida a ocupar as calçadas, as praças e as ruas. Aqui, o outro deixa de ser visto como uma ameaça e passa a ser um aliado na construção de uma dinâmica urbana viva e inclusiva.
=== ATUALIZAÇÃO em março/2022 ===
O conceito de cidade de quinze minutos, sobre a qual vim a escrever em 2022, recebeu grande influência das reflexões de Jane Jacobs.
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