se carro não passa, ninguém passa

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As ruas de uma cidade servem para a convivência, os encontros e a fruição do espaço urbano. Porém, na cultura urbana rodoviarista vigente em São Paulo e provavelmente outras cidades brasileiras, acredita-se que as vias públicas existem com uma outra finalidade: “as ruas foram feitas para os carros passarem”.

Dessa crença, decorre a seguinte conclusão: “se carro não passa, ninguém passa”. A ideia é tão natural que quase ninguém acha estranha a instalação de portões na entrada de uma vila ou rua sem saída, o que demonstra o quanto aquela crença é forte no imaginário.

Vilas e ruas sem saída de fato não servem como passagens de um lugar a outro, já que você só sai delas pelo mesmo lugar por onde entrou. Mas elas são, como qualquer outro espaço público, lugares para as pessoas estarem.

E se alguém quiser estar numa vila para contemplar um jardim, mostrar ao filho uma árvore frutífera que só tem ali, ou ainda porque um certo ponto daquela rua dá uma vista privilegiada para o pôr do sol?

As ruas da cidade são espaços públicos, não são? De fato e de direito, algumas ruas já deixaram de sê-lo.

Pelo menos desde 1990, diversas leis e decretos municipais se sucederam, possibilitando o fechamento da entrada de vilas e ruas sem saída. Porém, em todas elas, a restrição do acesso aplicava-se apenas aos automóveis. O fechamento podia ser feito por meio de portão, cancela, corrente ou similar, apenas no espaço correspondente ao leito carroçável. O espaço destinado às calçadas deveria ficar aberto, sem qualquer obstáculo, permitindo o livre acesso de pedestres.

Em 2015, a lei então em vigor sobre o assunto (15.002/2009) cai devido a uma declaração de inconstitucionalidade, já que ela deveria ter sido originada no poder Executivo, e não no Legislativo. Aparece então, em setembro daquele ano, o Projeto de Lei nº 453/2015, devidamente originado no poder Executivo. O texto original do PL 453 ainda garantia o livre acesso dos pedestres, autorizando apenas a restrição do acesso de veículos motorizados. Em seu artigo 4º, determinava que seria “vedada a restrição ao tráfego quando (…) for obstaculizada a livre circulação de pedestres”. Seguindo o ritual de tramitação, o PL 453 vai para o Legislativo.

Alguns meses depois, em abril de 2016, aparece um Substitutivo ao Projeto de Lei nº 453/2015. É aqui que passa a ser possível o fechamento total dessas vias. Os proprietários agora podem instalar portões que restringem totalmente o acesso de qualquer pessoa, inclusive pedestre, que não seja residente na vila ou rua sem saída.

As justificativas apresentadas no Substitutivo para tais mudanças no texto do PL foram, como era de se esperar, baseadas no medo. Em certos momentos, o texto da justificativa faz uma enumeração de ameaças que lembra o jornalismo policial sensacionalista: “Dados coletados pela população (…) demonstram que, antes do fechamento de suas vilas e ruas, estas eram expostas a furtos, roubos, estupros, tráfico de drogas, homicídios, latrocínios e outros crimes”.

Curiosa é a fonte de tais informações: “dados coletados pela população”. Note que, segundo o texto, os tais dados demonstram a existência de todos esses perigos. Impressionante como um argumento tão vago pode ser considerado aceitável para justificar uma restrição dessa natureza.

Uma outra justificativa oferecida para permitir a restrição total do acesso a vilas e ruas sem saída é que isso seria um incentivo para que as pessoas morem em casas: “A implementação desta lei (…) é medida fundamental para a conservação das vilas (…) para a segurança dos seus moradores e, via de consequência, para a viabilização de que os munícipes possam optar por residirem em casas”.

Traduzindo essa argumentação cheia de implícitos. Do jeito que as coisas vão, morar em casas é muito perigoso, coisas terríveis podem acontecer. Nesse cenário, a melhor opção é morar em apartamentos, que oferecem segurança e proteção. Portanto é necessário que o poder público tome medidas de incentivo para que as casas voltem a ser uma opção viável de moradia. Assim, propomos para esta lei um texto que autorize os proprietários a restringir o acesso de pessoas estranhas às vilas e ruas sem saída.

Argumentos como esses soam bem coerentes ao senso comum, alimentado diariamente por histórias de violência e reações de medo, que ensinam as pessoas a se protegerem umas das outras. O curioso é ver isso servindo de base para a alteração em uma lei, com a finalidade de restringir o acesso a espaços públicos. Mesmo com argumentos vagos e de validade questionável, os legisladores responsáveis por essa alteração sabiam estar apoiados em um consenso existente na sociedade, e portanto dificilmente seriam questionados.

O fechamento de vilas e ruas sem saída não depende de um pedido de autorização. Havendo os pré-requisitos estabelecidos, basta que os moradores protocolem na subprefeitura uma comunicação quanto ao fechamento. Naturalmente essa comunicação está sujeita a análise e, havendo problemas, o fechamento pode ser barrado. Mas existe um componente simbólico aqui. Os proprietários de imóveis em vilas e ruas sem saída não dependem de autorização do poder público para restringir o acesso de pessoas estranhas à rua onde moram. Eles simplesmente decidem e comunicam isso à prefeitura.

Na prática, vilas e ruas sem saída passam a ser condomínios. As ruas e calçadas existentes nesses locais deixam de ser espaços públicos e passam a ser áreas comuns de uso restrito a um conjunto de proprietários.

O relato de uma amiga que recentemente se mudou para uma dessas vilas ilustra como muda a lógica de uso desses locais. Quando quis fazer a festinha de seu filho pequeno dentro do espaço da vila, foi informada por um vizinho mais antigo que ali eles têm o hábito de, num caso como esse, perguntar antes a todos os vizinhos se eles estão de acordo com a realização da festinha, mesmo nos casos em que ela não vá atrapalhar a passagem ou violar leis do silêncio e do bom senso, que valem em qualquer lugar. O espaço comum da vila fica tão privatizado que mesmo quem é morador dali deixa de ter pleno direito de uso sobre ele, e precisa pedir autorização aos outros donos daquele lugar.

Em maio de 2016 é aprovada a Lei nº 16.439/2016 e também o Decreto nº 56.985/2016, que a regulamenta. Portões se proliferaram pela cidade, fechando de ponta a ponta as entradas de vilas e ruas sem saída para impedir que “gente estranha fique andando onde não deve”. Para os motoristas de fora da vila, quase nada mudou, pois essas ruas já não iam dar em lugar nenhum, talvez no máximo tenham perdido algumas ruazinhas para ficar rodando em busca de vagas de estacionamento. Para os proprietários de imóveis nas vilas e ruas sem saída, a “segurança de um condomínio fechado” e, suprema alegria, a valorização de seus imóveis, que agora estão localizados em ruas exclusivas, ou seja, que excluem.

Para a cidade, a institucionalização da ideia rodoviarista segundo a qual, se não for para passar carro, uma rua não precisaria nem existir.

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