Segundo o dogma da liberdade de consumo, um dos pilares do sistema capitalista, cada um pode escolher como gastar o seu dinheiro. Assim, se o mercado oferece carros gigantes e há quem deseje carros gigantes, nada impede que as pessoas comprem esse tipo de produto. Seja para ostentar riqueza, seja para intimidar os outros na disputa pelo espaço urbano, muita gente prefere ter um veículo gigante para andar pela cidade. As vendas de SUVs de fato têm crescido de forma assustadora em muitos lugares do mundo.
Acontece que esses veículos ocupam uma área maior de espaço público, são muito mais perigosos e letais para quem está fora deles e favorecem comportamentos agressivos por parte de quem os conduz. E se esses motivos já não são suficientes para demonstrar o quão nocivos eles são para as cidades e para a convivência, os SUVs são também mais poluentes, já que demandam muito mais combustível para movimentar sua enorme massa.

Cidades também podem fazer escolhas. Algumas administrações, infelizmente poucas, entendem que as cidades são aglomerações de pessoas, e não aglomerações de consumidores. Para resguardar às pessoas o direito à cidade, é necessário restringir práticas que comprometam esse direito.
No início de 2024, a prefeitura de Paris realizou uma consulta pública perguntando a seus cidadãos e cidadãs se desejavam ver mais SUVs ou menos SUVs nas ruas da cidade. A população escolheu menos SUVs. Com base nisso, a prefeitura decidiu desincentivar o uso desses veículos gigantes. A tarifa de estacionamento de SUVs passou a ter o triplo do valor da tarifa de automóveis de tamanho normal. Nos distritos mais centrais de Paris, uma hora de estacionamento custa 18 euros (equivalentes a R$ 114,12 pelo câmbio médio dos últimos 30 dias), enquanto custa 6 euros para automóveis normais.
Com essa decisão, a administração municipal manda uma mensagem: a liberdade de mercado te garante o direito de consumir uma tranqueira dessa, mas vá consumir pra lá! Seu veículo gigante atrapalha, ameaça e polui, portanto não é bem-vindo nas ruas de nossa cidade. O recado ressoa com um slogan comum em certos meios ativistas por aqui: “o carro é seu, a cidade é de todos”.
A liberdade de consumo jamais pode comprometer o interesse coletivo. As pessoas que moram nas cidades têm direito a uma vida com qualidade e a espaços agradáveis, saudáveis e seguros, adequados à convivência humana.
Pode soar exagerado considerar que, tomado individualmente, um veículo gigante – de uma pessoa querida, ou até mesmo o seu, leitor – represente ameaça às pessoas e às cidades. Trata-se, porém, de uma tendência de consumo. Cada um com seus motivos, mais e mais consumidores vêm escolhendo esse tipo de veículo para seus deslocamentos diários. É preciso, portanto, de medidas para evitar que um hábito de consumo afete o próprio propósito das cidades.
Isso vale, aliás, para qualquer automóvel. As cidades surgiram como lugares para pessoas. Antes que os automóveis tivessem infestado as cidades, houve uma época em que eles eram percebidos como objetos estranhos em meio às pessoas. Porém, não houve resistência; houve, ao contrário, incentivo ao seu consumo. O resultado disso, nós hoje conhecemos bem.
Para que as cidades voltem a ser lugares para pessoas, serão necessárias cada vez mais medidas de restrição à presença de máquinas. Precisamos começar evitando que a coisa piore, combatendo a substituição de automóveis de tamanho normal por veículos gigantes. A população e a prefeitura de Paris entenderam a importância disso.