a linguagem da buzina

O sentido das palavras e expressões de uma língua é determinado, em grande parte, pela situação de uso. Algumas palavras praticamente não têm um significado próprio, e nós precisamos do contexto para interpretá-las.

Um bom exemplo é a interjeição “ah”. Se eu te perguntar o que significa “ah”, simplesmente assim, de maneira descontextualizada, você provavelmente vai responder que não sabe, ou que depende da situação. É o contexto que atribui sentido a essa palavra. A entonação também influencia o sentido: tom ascendente ou descendente, pronúncia longa ou curta etc.

Quando você recusa o convite de um amigo para uma festa, ele provavelmente dirá “Ah…”, e você não terá dúvida em interpretar isso como “Que pena!”.

Alguém prova a salada e acha que ela está fraca de sal. Pega o saleiro, joga um pouco mais de sal sobre o tomate e a rúcula. Volta a provar e diz “Ah!”. Você imediatamente entenderá que ela quis dizer “Agora está boa!”.

Uma pessoa te pede para repetir uma frase que ela não entendeu. Você repete ou reformula a frase. A pessoa então diz “Ah!”, e você interpreta seguramente essa palavra como “Agora sim eu entendi”.

A língua funciona assim, e isso não acontece somente com as interjeições, preste atenção e verá: é a partir de um contexto que o ouvinte atribui sentido para as palavras. O mesmo acontece com o falante: ele escolhe uma palavra e usa uma certa entonação sabendo qual o sentido que isso vai produzir naquele contexto determinado. Qualquer usuário de uma língua sabe desse fato, ainda que apenas intuitivamente.

Com a buzina acontece algo bem parecido. Uma buzinada é um ruído que obviamente não tem um significado próprio. Interpretamos uma buzinada de acordo com o contexto e de acordo com sua duração que, no caso da buzinada, equivale à entonação da fala.

Algumas buzinadas são claramente amigáveis. Um toque curto quando alguém acabou de ceder a passagem equivale a um “Obrigado!” ou algo semelhante. Um ou dois toques curtos quando um motorista passa por um grupo de pessoas conhecidas paradas na calçada ou em frente a um bar tem um tom claro de saudação e, portanto, equivale a um “Olá!”.

Há também alguns tipos de buzinadas que não permitem uma interpretação tão amigável assim.

Abre o semáforo, dois segundos já se passaram e o carro da frente ainda não andou. O motorista de trás buzinará: “Anda logo, porra!”. De fato, o “porra” é opcional nesta interpretação. Mas repare que o simples “anda logo” já é bastante agressivo por si só. Em que situação se dirige um “anda logo” a um desconhecido sem que isso seja um gesto de extrema grosseria?

Um motorista se aproxima de um cruzamento sem semáforo com uma via que é preferencial. Ele vem a uma velocidade acima da razoável e não demonstra a menor intenção de reduzir para olhar se vem alguém na outra via. Dois toques mais ou menos longos: “Estou chegando, quem estiver na transversal, que pare para eu passar!”. Você já viu uma cena como essa? Ela é bastante comum, especialmente de noite e de madrugada.

Motorista vai ultrapassar o ciclista. Um toque curto pode sim até ser interpretado como um aviso amigável, para o caso (um tanto improvável!) de o ciclista não ter percebido que tem um carro logo atrás dele. Mas um ou mais toques longos já não permitem essa interpretação. Só consigo entender isso como algo equivalente a “Sai da rua!”, ou “Que é que você está fazendo aí?”, ou “Por que você não vai pra calçada, seu imbecil?”. E ainda há quem diga que é preciso educar os motoristas para que eles não façam mais isso…

Um carro para por qualquer motivo: para desembarcar alguém, para fazer uma conversão permitida ou proibida, ou simplesmente porque o motor do carro morreu. O motorista dispara a buzina num longo e agressivo toque: “Por que você não anda, seu desgraçado?”, ou “Sai da minha frente, seu idiota!”. O mais curioso é observar que, depois de buzinar por alguns segundos, o motorista dá um jeito de desviar do carro parado e segue viagem normalmente. Ele poderia ter feito isso logo, em vez de buzinar. Mas ele não pode abrir mão do seu esperneio. Se a situação lhe dá a chance de agredir alguém, ainda que isso não vá resolver seu problema, por que não agredir?

Qualquer um sabe interpretar muito bem essas e outras buzinadas. Pode talvez usar palavras um pouco diferentes para traduzi-las, mas o teor da frase será essencialmente o mesmo. A intenção da buzinada é sempre muito clara: uma saudação, um aviso, uma reclamação, um insulto leve, um insulto violento, um esperneio.

Naturalmente existe uma reação psíquica e fisiológica a esses estímulos. Quando uma pessoa faz ou recebe um gesto agressivo, o organismo libera substâncias nocivas no sangue e a mente experimenta sensações bastante desagradáveis, daquelas que se acumulam e fazem a pessoa chegar em casa achando que teve um dia horrível, sem saber por quê.

Até mesmo quem não está envolvido em uma troca de gentilezas desse tipo acaba sendo afetado. Não se trata simplesmente do efeito de poluição sonora. Diferente do barulho de uma britadeira, neste caso todos nós compreendemos a mensagem de ódio que uma buzinada longa carrega.

A vida de um motorista nas ruas de uma cidade entupida é repleta de sentimentos desse tipo.

Optar por um esquema de vida que te obrigue a usar o carro na maioria dos seus deslocamentos implica, entre outras coisas, escolher uma vida em que você passa boa parte do dia cercado de desgosto, raiva, desprezo, vingança ou outros sentimentos violentos.

Motoristas vivem isso o tempo inteiro. Podem tentar negar ou minimizar os efeitos disso na saúde, mas seus corpos estão ouvindo tudo.

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