passar por cima

A ideia de passar com o carro por cima dos outros sempre teve simpatizantes.

Na capital do império, onde destruir para consumir é uma filosofia levada a sério, existe o bigfoot: um utilitário adaptado com pneus enormes, com o qual se pode literalmente passar por cima de outros automóveis, levando ao delírio enormes plateias em arenas lotadas. Espetáculos desse tipo existem nos EUA desde a década de 70.

bigfoot

Mais recentemente, perceberam que existia uma demanda de mercado associada à ideia de passar por cima dos outros. Então criaram o SUV (Sport Utility Vehicle na língua original, que pode ser traduzido livremente por Automóvel Muito Grande). E essa coisa está se proliferando rapidamente por aqui.

Até o momento, não tenho notícia de que alguém, com seu SUV, tenha passado por cima de outra pessoa (pelo menos no sentido físico de passar por cima, como fazem os bigfoots originais). Não me espantarei no dia em que isso acontecer. Muitos proprietários de SUVs não passam fisicamente por cima dos outros por considerarem que isso não é uma coisa certa e/ou bonita de se fazer, mas há aqueles que não o fazem apenas para evitar a dor de cabeça que teriam com a justiça durante alguns meses.

A expressão passar por cima tem outros sentidos além do físico. Há também o sentido social e o sentido simbólico.

Socialmente, pode-se passar por cima de alguém dando demonstrações de superioridade segundo algum critério. Como o fator econômico, em nossa cultura, é amplamente aceito como critério válido de comparação, demonstrações de superioridade econômica são uma forma de passar por cima dos outros. Neste aspecto, os SUVs não são novidade: carros caríssimos de menor porte ou qualquer outro produto, prática ou ambiente caro (ou exclusivo, como gostam de chamar) sempre serviram para isso.

A rigor, o que chamo de sentido social da expressão é também um sentido simbólico, pois não é físico, mas reservo o que chamo de sentido simbólico para me referir a uma outra situação.

No sentido simbólico, é possível passar por cima dos outros de um jeito bastante próximo do sentido físico mas sem chegar às vias de fato. Consiste num gesto simbólico no qual se apresenta a superioridade física, no caso o tamanho do automóvel, com a intenção de intimidar.

Isso é frequente nas ruas, especialmente em situações de disputa por espaço. Por exemplo, num encontro de duas faixas, no qual dois automóveis (um SUV e um de tamanho normal) irão decidir qual deles vai entrar primeiro. Uma manobra um pouco mais agressiva do SUV muitas vezes é suficiente para que ele se imponha e ocupe o espaço, mesmo que isso contrarie o bom senso, a precedência ou a regra da via preferencial. Com esse gesto, o motorista do SUV passa por cima dos outros.

O mesmo acontece noutras situações: em ultrapassagens nas estradas, na disputa por vagas em estacionamentos, em rotatórias e cruzamentos.

Uma vez ouvi, em uma sala de espera, um proprietário de SUV comentar, plenamente satisfeito, que “hoje não dá mais para viver sem um carro desse, senão ninguém respeita”.

Os marqueteiros que viram na vontade de passar por cima dos outros uma demanda de mercado de fato estavam certos.

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