Quando algum recurso é escasso, uma sociedade inteligente busca formas de tornar o seu uso mais racional. Se há escassez de energia elétrica, por exemplo, é de se esperar que tanto a indústria quanto os usuários façam escolhas coerentes com essa realidade: aqueles, desenvolvendo equipamentos que consomem menos energia; estes, optando por aparelhos mais econômicos na hora de decidir uma compra.
Especialmente nas grandes cidades, existe hoje uma evidente escassez de espaço nas ruas. Assim, seria razoável esperar que os automóveis fossem cada vez menores. Essa tendência chegou a existir há algumas décadas, na época dos chamados “carros populares”, quando houve um aumento do número de carros pequenos nas ruas. Ainda que o motivo principal da escolha fosse outro (o valor menor, apoiado por incentivos fiscais), a opção por carros menores era coerente com um uso racional do espaço.
Atualmente essa tendência se inverte, e vemos a proliferação de automóveis gigantes, os SUVs.
Verdadeiros tanques de guerra urbanos, ocupam um enorme espaço onde passam e onde param. Têm dimensões de utilitários pesados mas são tratados pela legislação de trânsito como automóveis leves.
Sendo muito mais pesados que os outros automóveis, causam maiores danos ao pavimento, sem entretanto estarem sujeitos a restrições de tráfego em vias menores, como acontece com os caminhões. Nas estradas, pagam pedágio como automóveis leves.
Por serem mais largos que a média dos automóveis, muitas vezes não conseguem passar onde outro carro passaria, entupindo a via e impedindo a passagem dos outros veículos.
E como quase sempre têm vidros pretos, podem causar transtornos à vontade, pois seus motoristas estão sempre protegidos do olhar repreensivo de alguém que se sinta prejudicado.
Garagens e estacionamentos oferecem vagas para automóveis. Nestas áreas de uso coletivo, as vagas são criadas de acordo com o tamanho médio de um automóvel de passeio. Se eu sou proprietário de um caminhão, terei que procurar uma alternativa para estacionar meu veículo, pois ele não cabe em uma vaga de garagem de condomínio.
Donos de SUVs não têm essa preocupação. Podem largá-los sem nenhum constrangimento em vagas projetadas para veículos menores. No país do bordão “os incomodados que se mudem”, os carros das vagas vizinhas ficarão espremidos pelo excesso de largura, e a área de circulação e manobra ficará parcialmente obstruída pelo excesso de comprimento desses brinquedões. E a maioria das pessoas parece não ver nenhum problema nisso. Intimidado pelo tamanho do automóvel, que síndico comprará essa briga com um dono de SUV?
Se tanto a indústria quanto tais consumidores preferem ignorar a escassez de espaço que existe hoje, seria razoável que esses veículos pelo menos estivessem sujeitos a restrições de circulação, como acontece com os caminhões em certas vias da cidade. Dá até para imaginar os esperneios que isso provocaria. Muitos deles seriam pateticamente fundamentados na tal liberdade de ir e vir.
O mais assustador é que muito provavelmente a cidade irá acabar se adaptando a essa gente espaçosa, e não o contrário. Não nos espantemos se faixas de rolamento e vagas de estacionamento passarem a ser projetadas para as dimensões irracionais desses automóveis muito grandes. Fique de olho nos lançamentos imobiliários, e logo verá algum que ofereça “vagas para SUVs” como um diferencial.
É verdade que esses automóveis monstruosos se proliferam também em outros países onde impera a cultura do consumo e da ostentação. Pelo menos por aqui, podemos ver nisso mais uma repetição da velha fórmula da sociedade brasileira: para proteger privilégios, socializa-se o impacto negativo causado por eles.