Um curioso documentário, chamado Soluções para o Trânsito, pode ser encontrado na internet e provavelmente já foi ao ar pelo canal pago Discovery Channel.
Trata-se de uma produção desse canal em parceria com a CCR, grupo privado que detém a exploração comercial de boa parte das rodovias que dão acesso à capital paulista, de algumas rodovias em outros estados, do rodoanel metropolitano, da linha privada do metrô de São Paulo e até mesmo da inspeção ambiental dos veículos na capital paulista. Ou seja, uma corporação formada para lucrar, de um lado, com uma infraestrutura radicalmente baseada no transporte individual e, de outro, com a gestão de suas mazelas.
Logo no início do filme aparece o selo da Lei de Incentivo à Cultura. Isso significa que foi utilizado dinheiro público para que a CCR possa apresentar ideias de seu interesse sobre o tema. Não é a primeira vez, e nem será a última, que um grupo privado assume explicita e descaradamente o papel de influenciador dos projetos urbanísticos e de mobilidade em São Paulo.
Ficamos então curiosos em saber quais são as “soluções”, no entender da CCR, para a cultura rodoviarista da qual ela tanto se beneficia.
O filme mostra experiências e projetos interessantes relacionados à mobilidade urbana, como o sistema BRT (bus rapid transit) de Curitiba, a rede de ônibus e ciclovias de Bogotá e até mesmo o projeto de hidroanel para a capital paulista proposto pelo arquiteto Alexandre Delijaikov, naturalmente sem resistir em chamá-lo de utópico.
Mas entre as experiências apresentadas, há duas especialmente alinhadas com a ideologia rodoviarista que domina o Brasil, onde as vendas de automóveis jamais podem ser ameaçadas.
Essas duas experiências são o pedágio urbano e o automóvel conduzido por computadores.
O filme mostra o sistema de cobrança na área central de Londres (naturalmente sem mencionar que seu pretenso impacto positivo é bastante controverso e difícil de se demonstrar) e apresenta depoimentos de gestores e especialistas favoráveis ao pedágio urbano. Um deles traz o argumento de que a arrecadação será usada para aumentar a velocidade de crescimento da rede de metrô que, segundo o filme, é hoje de 1,5km por ano e poderá ser multiplicada por dez. Tanto pelo cinismo do argumento quanto pela forma como é colocado, chega a parecer proposta de campanha eleitoral.
É evidente que a infame rede paulistana de metrô cresce tão devagar por opção política, porque preferem que seja dessa forma, e não por falta de dinheiro, como sugerem os noticiários sobre o assunto.
Do ponto de vista do interesse público, o pedágio urbano é ineficaz e sobretudo injusto, por <vários motivos>. Mas uma discussão séria, técnica e pautada por princípios não interessa à CCR, da qual só podemos esperar que defenda qualquer projeto que lhe aumente as receitas.
Outra das “soluções” apresentadas pelo filme é o automóvel conduzido por computadores. Utilizando imagens de computação gráfica, o filme mostra um ambiente totalmente organizado, com automóveis que andam tranquilamente em filas, cada um seguindo seu destino, conforme programado pelo proprietário.
Uma cena marcada sobretudo pela ordem, fazendo oposição ao caos que, segundo o clichê, caracteriza o trânsito de São Paulo. Coisa de ficção científica, que as pessoas adoram. Solução mágica, ideal para quem quer resolver problemas sem ter que se preocupar com os efeitos gerados.
Pensado a partir do interesse dos defensores do rodoviarismo, o projeto do automóvel conduzido por computadores é genial como “solução” para o trânsito, pois reforça algumas de suas ideias fundamentais.
- O problema são as pessoas, e as máquinas estão aí para nos salvar.
- Os automóveis são mesmo essenciais, e em nenhum momento deve-se cogitar substituí-los por outro meio de transporte.
- A solução do problema virá pela implantação de novas tecnologias, tornando desnecessário abrir mão de confortos e mudar comportamentos.
- O que cabe à administração pública não é rever as políticas de mobilidade, tendo que recorrer às impopulares medidas restritivas ao uso do automóvel, mas investir na pesquisa de soluções mágicas, ou melhor, encontrar parceiros privados que o façam (e a CCR está aí para isso).
- Em algum momento, toda a frota precisará ser substituída por veículos controlados por computadores, o que faz brilhar os olhos da indústria automobilística.
- Durante o processo de substituição da frota, as vias ou faixas já adaptadas ao controle eletrônico provavelmente serão de uso exclusivo daqueles que já substituíram seu automóvel por um controlado por computador.
Num passe de mágica, o automóvel conduzido por computadores agrada a todos ao mesmo tempo: motoristas deslumbrados, fabricantes de automóveis, empresas de tecnologia, gestores públicos, concessionários privados.
Nestes tempos de deslumbramento pela tecnologia, máquinas computadorizadas sempre vão encantar uma audiência infantilizada pela cultura de consumo, louca por brinquedos inovadores. Mais ainda se a proposta for trazida pelo Discovery Channel, apresentada como algo que a qualquer momento pode sair da ficção científica e passar a fazer parte da vida.
Ao mostrar os projetos de mobilidade de caráter verdadeiramente público, como os de Curitiba e de Bogotá, o filme está apenas sendo redundante. Afinal, mesmo por aqui, qualquer um defende investimentos em transporte coletivo, ainda que seja para que os outros utilizem.
Tudo no filme da CCR está perfeitamente de acordo com a ideologia rodoviarista paulistana. O acesso às “soluções” se dá através do dinheiro, gerando formas de exclusividade, ou seja, excluindo as pessoas do espaço público. As “soluções” virão de cima, do mundo mágico da tecnologia, sem exigir mudanças de hábito ou reorganização dos projetos de vida.
É nesse futuro mágico que se encontram as “soluções” da CCR para o trânsito de São Paulo.