Diz a lenda que, numa certa província, algumas pessoas estavam sendo enterradas vivas por engano. Ninguém sabia como isso estava acontecendo, mas o fato é que um dia, ao andar pelo cemitério, alguém notou que alguns túmulos haviam sido forçados por dentro para serem abertos, levando a concluir que aquelas pessoas haviam sido enterradas vivas.
A notícia logo correu e deixou a população chocada. O chefe local mandou então chamar os sábios da província e pediu que estudassem como resolver o caso.
O que fazer para que ninguém mais seja enterrado vivo?
Duas soluções foram apresentadas.
O primeiro sábio propôs que fosse criada uma área especial, junto ao cemitério, onde as pessoas supostamente mortas fossem deixadas em observação. Só depois de alguns dias, uma vez que houvesse absoluta certeza de que a pessoa não estava viva, é que seria feito o enterro.
O segundo sábio propôs um novo modelo de caixão. Na tampa desse caixão haveria uma estaca pontiaguda, posicionada exatamente na altura do coração. No momento em que o caixão fosse fechado, a estaca perfuraria o peito da pessoa, eliminando qualquer dúvida.
As duas soluções são igualmente eficazes para o problema. De fato, qualquer que fosse a solução adotada, ninguém mais seria enterrado vivo naquele lugar.
Esta história faz lembrar muitas soluções adotadas no Brasil, sobretudo na área da mobilidade e do uso do espaço público.
O que fazer para diminuir o número de atropelamentos?
Uma solução seria fiscalizar e punir os motoristas para que eles deixem de dirigir da forma animalesca e brutal que dirigem. A outra solução é tornar algumas vias tão inacessíveis, desertas e hostis que caminhar por elas pareça, cada vez mais, uma insanidade. Sem pedestres, não há quem atropelar.
O que fazer para impedir que ciclistas sejam assassinados?
Uma solução seria controlar os motoristas que não têm condições psicológicas para compartilhar uma via e, portanto, não podem ser habilitados a portar uma arma como o automóvel. A outra solução é difundir a ideologia da segregação, segundo a qual os ciclistas só podem trafegar se e onde houver ciclovias. Impedindo que os ciclistas compartilhem a via com motoristas, jamais haverá novos assassinatos.
Como evitar a violência em praças e espaços públicos?
Uma solução seria estimular de todas as maneiras possíveis o uso permanente dessas áreas, criando um sistema de controle social que inibe a atuação de agressores. A outra solução é abandonar definitivamente os espaços públicos e criar uma cultura de lazer em locais privados. Nesses locais, os frequentadores podem contar com agentes privados de segurança que são responsáveis pela restrição do acesso (afinal, os agressores são sempre os diferentes, os outros, certo?) e pelo controle dos comportamentos dos frequentadores, como vemos acontecer em qualquer lugar privado. Nossa cultura de padronização tem horror à diferença. Esconde ou elimina os desviantes e se especializa cada vez mais na “arte de evitar contatos”.
Há sempre pelo menos duas soluções para um problema. Criar a impressão de que não há alternativas é um mecanismo muito utilizado por sistemas autoritários para desestimular a reflexão e favorecer a aceitação passiva de certas soluções que, vistas de fora, pareceriam tão absurdas como a do caixão com estaca pontiaguda.
Uma sociedade faz suas escolhas o tempo todo. Ao deixar de sequer questionar as escolhas feitas pela nossa sociedade, oferecemos a ela a nossa conivência, ou mesmo o nosso apoio.
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