No princípio, era o vazio.
Então o Criador fez a terra, os mares, as florestas e os animais. Fez também as cidades, as casas, os edifícios e os carros. Completando a paisagem, o Criador fez as ruas para os carros passarem. Fez as calçadas para facilitar o acesso dos carros às casas e edifícios. Poderiam até crescer árvores ali, desde que não atrapalhassem a entrada dos carros.
Finalmente criou os seres humanos, sua obra prima. Diferentes dos cachorros, jumentos e lagartixas, os seres dessa nova raça seriam bípedes. Afinal, para dirigir um carro, bastam duas pernas. Como é raro ter que acelerar e frear ao mesmo tempo, uma perna poderia fazer essas duas funções enquanto a outra serviria para pisar na embreagem.
Algumas ruas, feitas um pouco às pressas, acabaram ficando muito estreitas. Então o Criador resolveu dotar os humanos de inteligência para que resolvessem depois aquele problema de projeto. Usando sua sabedoria, os humanos inventaram os tratores e as máquinas de demolição para que pudessem alargar as ruas, criando belas avenidas. Antes que começassem a aparecer reclamações contra tanta destruição, inventaram também uma doutrina que faria com que as pessoas achassem bonito destruir para construir outra coisa no lugar. “Construindo, um país cresce”, repetiam os sacerdotes, mostrando as sagradas escrituras.
Nessas largas avenidas, verdadeiros templos de amplidão, os humanos puderam enfim circular livremente com seus carros, conforme havia pensado o Criador. Ali era possível viver a experiência mística da velocidade, pela qual alcançavam a mais plena realização do ser. Pinturas dessa época retratam visões paradisíacas de vias que subiam aos céus levando os fiéis, pelo rito da velocidade ilimitada, à suprema transcendência da alma.
Um dia, porém, veio a queda. Hordas de rebeldes começaram a se desviar do verdadeiro caminho. Preferiam andar a pé.
Os mais radicais proferiam heresias, defendendo que o Criador houvera feito as ruas para as pessoas, não para os carros.
Mesmo com belas pontes para levá-los às alturas e vias lisas e perfeitas para acelerar e chegar lá antes dos outros, esses gentios escolheram caminhar. Tão frágeis e vagarosos, optaram por contrariar a vontade do Criador e usar as pernas para tocar o chão, não para pilotar o carro.
Alguns, deveras teimosos, insistem em ficar onde não devem. Acabam esmagados.
Seus semelhantes, tomados de cólera, berram e esbravejam, colocando a culpa naqueles que dirigem os carros. Por que tanta revolta, se eles estão apenas seguindo os desígnios divinos que lhes foram dados? Como pode essa gente rude insistir em renegar os carros, contrariando a própria natureza?
Talvez seja apenas questão de tempo para que eles reencontrem o caminho. É preciso fazer algo para salvar esses infiéis. Mas como é difícil compreender quem escolhe outro credo, outra vida.
Delícia de texto. O uso da ironia leva a risos, mas a temática é muito séria.
Os carros, a poluição, o desprezo pela natureza, nós nos transformamos em bonecos bípedes desumanizados.