o feio e o desconhecido

Avenida periférica, longos quarteirões desertos, imóveis comerciais fechados, as portas pichadas, cimento quebrado, ninguém caminha pela calçada. O asfalto deformado da pista faz tremer a bicicleta, fico atento a qualquer buraco que pode aparecer à frente.

As travessas desta avenida dão em ruas residenciais onde o vazio da noite nos faz desconfiados. As pessoas já se recolhem em suas casas. De cada facho da iluminação pública vem um conforto, que fica para trás conforme sigo, e então vem outro.

Num lampejo de pensamento, vejo isso tudo feio, como se estivesse pedalando de noite em um bairro desconhecido.

No passado, estas bandas já foram meu caminho da roça, este era o meu território. Feio ou bonito, eu não julgava. Via apenas o caminho de casa.

Então eu passei um tempo longe, raramente vinha de bicicleta a estas bandas.

Meu olhar se afastou.

O tempo longe me devolveu o olhar de estrangeiro. Voltei a ter nesta paisagem a mesma sensação que tenho em avenidas semelhantes, igualmente periféricas, de bairros da cidade em que quase nunca passo.

Percebi que muitas vezes o feio de certas paisagens é apenas o desconhecido.

De longe, no estranhamento, o feio sobressai numa paisagem que, vista de perto, é simplesmente o meu caminho.

Faz poucos meses que mudei, volto a viver e pedalar por aqui. Com o tempo, nem perceberei mais essas rebarbas. Na manhã nebulosa, no sol escaldante, na noite quente de primavera, na madrugada voltando do bar, minha bicicleta logo desviará sozinha dos buracos no asfalto, estarei em casa.

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