Estar em um aeroporto costuma ser motivo de alegria, afinal geralmente estamos prestes a viajar, e voar é sempre divertido. Essa euforia, porém, tende a nos cegar para as diversas formas de violência presentes ali, ao menos em potencial, às quais temos que nos submeter como condição para poder embarcar.
Logo ao entrar já sentimos a violência da vigilância constante, vindo de agentes e câmeras por todas as partes. A cultura do medo nos faz achar isso trivial, nos dizendo que tudo pode ser motivo de ameaça, portanto a vigilância onipresente é um mal necessário ou, pior, que é para o nosso bem. Nos diz também que, afinal, se somos cidadãos de bem, não teríamos nada a temer, pois a segurança está do nosso lado.
Sabemos que não é bem assim. E sabemos também que, pelo menos no Brasil, essa categoria cidadão de bem só se aplica, no olhar dos agentes de segurança, a determinadas etnias, condições sociais e padrões de vestimenta. Então não dá para achar que está tudo bem, mesmo quando nos enquadramos nas condições de sermos identificados com essa categoria.
A violência do Estado está presente no aeroporto nos rituais de embarque. Em cumprimento a normas das agencias de aviação civil de praticamente qualquer país, somos obrigados a nos submeter a uma revista em nossas bagagens de mão, roupas e corpos. Temos que tirar casacos, gorros e calçados, por mais que esteja frio e as condições do local sejam pouco favoráveis para essa desmontagem. Tudo deve ser feito de forma ágil, sob a pressa dos agentes de segurança aeroportuária, que atuam para acelerar o processo, e muitas vezes também dos passageiros que vêm atrás.
Em algumas situações, cães farejadores condicionados para reagir com raiva diante de certos cheiros virão fuçar os pertences e as partes das pessoas, situação muito desagradável e estressante. Caso os aparelhos de raio-x revelem algo suspeito na bagagem, a pessoa poderá ter suas malas vistoriadas arbitrariamente.
No caso de vôos internacionais, estamos sujeitos aos interrogatórios pelos agentes do controle de passaporte. Pode ser uma situação bastante tensa, a depender do local, por conta da barreira da língua. E no caso de certos países ou de passageiros de certas nacionalidades, é aí que pode acontecer o barramento definitivo, e a pessoa terá que retornar desse ponto.
Tem a possível vistoria de alfândega, a qual dizem ser feita por amostragem, em que precisaremos provar, espalhando toda a bagagem, que não somos contrabandistas.
E em certos países há ainda, por todos os lados, avisos dizendo que se você se afastar, mesmo que sem querer, dos seus pertences, eles serão considerados bagagem desassistida e você está sujeito ao castigo cruel de uma multa por fazer a segurança do aeroporto e os demais usuários pensarem que sua mala está cheia de bombas e você é um terrorista com intenção de explodir o aeroporto.

Há também a violência do poder privado, com suas regras determinadas por tecnocratas. Talvez esta seja ainda mais tóxica do que a violência estatal, que supostamente existe em benefício de interesses coletivos. A violência corporativa mostra toda sua força em um aeroporto, nos ameaçando com a possibilidade de sermos extorquidos com mais tarifas do que as que já pagamos até o momento e com a possibilidade de não embarcarmos, se não nos adequarmos às determinações da empresa que, sabemos, existem com a única finalidade de ganhar ainda mais dinheiro.
Para evitar que as aeronaves decolem com assentos vazios, as companhias têm historicamente a prática de vender mais passagens do que os lugares existentes no avião. Elas têm estatísticas sobre a quantidade de pessoas que compram a passagem e não aparecem para viajar, então compensam isso vendendo passagens a mais. Em outras palavras, você comprou e pagou sua passagem mas existe a possibilidade de você não viajar, pois seu avião já está cheio. Mesmo atualmente, com os direitos dos passageiros cada vez mais reduzidos e as condições de remarcação de viagens ficando mais restritas ou sujeitas a multas, a prática do overbooking segue firme.
As regras e tarifas relacionadas a bagagens são descaradamente extorsivas, e não temos alternativas. Há alguns anos, o direito de levar uma bagagem grande deixou de existir. O custo disso obviamente sempre esteve embutido no preço da passagem, mas as empresas deram um jeito e passaram a cobrar isso como um adicional. O argumento patético foi que elas estariam permitindo que, cobrando separadamente, a viagem ficasse mais barata para passageiros que não levam tanta bagagem. Porém, já que as tarifas são dinâmicas, é impossível demonstrar que passageiros sem bagagem despachada estão de fato pagando menos.
E agora passaram a tratar certos itens, como instrumentos musicais, bicicletas e outros artigos esportivos, como bagagem diferenciada, cobrando mais caro pelo seu transporte, fazendo exigências abusivas quanto ao embalamento e sem qualquer garantia de que serão tratadas com mais cuidado.
O transporte aéreo é a atividade em que a discriminação de preços (um mesmo produto ou serviço vendido a cada pessoa por um preço diferente) é praticada com o maior descaramento. Em um avião, todos partirão no mesmo horário, todos chegarão no mesmo horário, balançarão igual em caso de turbulência e estão sujeitos a exatamente o mesmo risco. Porém, cada um naquela aeronave pagou um valor diferente para estar ali. Conforme o momento e a forma da compra, a tarifa é diferente. Se pelas datas de ida e volta consultadas na busca a viagem parece ser de alguém a trabalho, pode meter a faca, pois provavelmente é a empresa que está pagando. As tecnologias de cobrança dinâmica, que se aperfeiçoam cada vez mais e hoje são aplicadas também por empresas de ônibus, pousadas e outros serviços, se consolidaram, pelo menos de forma mais amplamente aceita, no comércio de passagens aéreas.
Ainda no aeroporto vemos a violência econômica nos preços exorbitantes encontrados em praticamente qualquer comércio disponível ali. Seja nos restaurantes, cafés e lanchonetes, nas casas de câmbio, nas lojas de lembranças para turistas, e mesmo nos free shops, tudo ali será mais caro que nos estabelecimentos equivalentes em outros lugares. Se você está com fome ou sede, terá que pagar o que eles quiserem, sem que façam qualquer esforço para disfarçar esses preços diferenciados. Afinal os aeroportos geralmente ficam em lugares afastados, sem alternativas de comércio em volta, então você está confinado e não tem para onde correr.
Se quiser comprar lembranças ou itens de última hora para sua viagem, vai pagar caro por isso. Nos free shops tudo é descaradamente mais caro do que fora, apesar da alegação de que são mercadorias livres de impostos. Mas poucos farão essa comparação de preços ou questionarão. A diferença será custeada pela sua alegria de estar ali, pois passageiro feliz não se importa em pagar mais caro. E nos aeroportos há sempre aquelas pessoas que, onde quer que estejam, gostam mesmo de pagar mais caro.
Aliás está aí uma possível fonte de violência social, pela presença de pessoas que, por sua condição econômica ou nacionalidade, se acham superiores, têm mais pressa que os outros e desrespeitam filas de atendimento ou embarque, vêm de um país mais importante que o seu e te olham de cima.
Aeroportos foram usados pelo antropólogo Marc Augé como bons exemplos do que ele chama de “não lugares”: esses locais frios e padronizados, sem possibilidade de vínculos, sem alma nem qualquer traço com que as pessoas possam estabelecer uma relação de pertencimento. São praticamente idênticos em qualquer lugar do mundo. Buscam – e em grande parte conseguem – proporcionar a impessoalidade absoluta, apesar do papinho do marketing e de tratarem todos por nome e sobrenome. Como um objeto na esteira de uma fábrica, apenas passe, flua, não perturbe, não ameace ninguém, temos mais a fazer e muito dinheiro a ganhar, não nos atrapalhe.
Se é intrigante como esse ambiente pode concentrar tantas formas de violência, é mais intrigante ainda como isso passa despercebido para tanta gente que, anestesiada pela situação, sinta isso talvez só de maneira inconsciente, inclusive em seus corpos. Esse estresse possivelmente é uma das fontes do esgotamento físico que muita gente relata depois de viajar.