O acostamento é um espaço importante de uma estrada ou rodovia. Do ponto de vista dos motoristas, a importância está em ser uma área de refúgio para quem, por qualquer motivo, precisa parar. Seja uma parada obrigatória (pane mecânica, mal estar do condutor ou de algum passageiro), seja uma parada não tão obrigatória (consultar um mapa, fazer uma ligação, beber água, tirar fotos), é essencial que haja um espaço fora da pista para isso, ou uma situação muito perigosa seria criada.
Além disso, um acostamento é o espaço para o tráfego de pedestres e ciclistas, que têm tanto direito de usufruir da estrada quanto aqueles que andam em veículos motorizados.
Entretanto, existem duas práticas terrivelmente criminosas, relacionadas ao acostamento, que estão se tornando cada vez mais comuns e, portanto, tidas como naturais. Uma delas é o crime praticado pelos motoristas que trafegam pelo acostamento, geralmente usando esse espaço para ultrapassar ou furar fila. A outra prática vem das empresas privadas que exploram e administram estradas. O crime delas consiste em autorizar o tráfego de automóveis pelo acostamento, transformando esse espaço, ainda que temporariamente, em uma faixa adicional de rolamento.
Ultrapassar ou furar fila?
Nem todos percebem a diferença entre ultrapassar e furar fila. Quando um motorista passa à frente de alguém que está andando devagar por opção, está ultrapassando. Porém, quando um motorista passa à frente de alguém que está parado ou andando devagar porque a via está congestionada ou bloqueada, esse motorista está furando fila.
É curiosa a maneira como a cultura brasileira lida com as filas. Por um lado, o respeito às filas é uma prática simples e trivial na maioria das situações, como em uma padaria ou na entrada de uma sala de cinema. Porém, quando investidas de uma armadura de aço e um capuz que cobre o rosto, muitas pessoas ignoram o princípio da precedência e passam por cima de quem quer que esteja à sua frente. São poucos os que resistem à tentação de furar fila quando existe essa possibilidade. E menos ainda os que manifestem sua desaprovação a essa gente esperta. Coisas da cultura do automóvel.
Quando uma estrada está congestionada, o acostamento logo passa a ser usado para furar fila. E nas estradas de pista simples, quando não há uma segunda faixa e o tráfego em sentido contrário é intenso, sem brechas para ultrapassagem, o acostamento é também usado para ultrapassar.
Nos dois casos, a manobra é feita com uma certa velocidade e com muita agressividade. Um ciclista ou pedestre que esteja andando pelo acostamento, em seu pleno direito de transitar, pode a qualquer momento ser esmagado por um motorista criminoso que trafega pelo acostamento.
A institucionalização do crime
Mais recentemente, algumas concessionárias responsáveis pela gestão de estradas passaram a instalar no acostamento uma sinalização luminosa que, quando acionada, autoriza o uso desse espaço como uma faixa de rolamento adicional.
Supostamente, usa-se esse recurso quando o número de veículos está acima de um determinado nível, geralmente em dias e horários de pico. Nessas condições, o tráfego evidentemente está mais lento. Portanto, os motoristas estão andando mais devagar não por opção, mas porque sua velocidade está limitada pelas condições de tráfego.
Assim, ao autorizar o tráfego pelo acostamento, a empresa incentiva que os motoristas furem fila.
De fato, é comum que a velocidade dos veículos que vão pelo acostamento seja maior do que em todas as outras faixas.
Com essa infame medida operacional, a empresa criminosa elimina de maneira irresponsável o espaço dos pedestres, ciclistas e veículos motorizados que precisem parar.
E talvez o maior dano seja o fato de institucionalizar a prática de trafegar pelo acostamento.
O Código de Trânsito Brasileiro proíbe o uso do acostamento para transitar (artigo 193). Quando um gestor de estrada autoriza essa prática, além de contrariar abertamente uma lei, está abrindo um precedente, na cabeça do usuário, para que ele use o acostamento para transitar em outras situações. Bastará uma boa desculpa para que qualquer motorista se sinta autorizado a andar pelo acostamento sempre que julgar necessário. Assim, a função do acostamento começa a ser ressignificada.
Assassinatos de pedestres e ciclistas nos acostamentos tendem a se tornar mais frequentes.
As concessionárias que incentivam o uso do acostamento, contrariando o Código de Trânsito Brasileiro, deveriam ser corresponsabilizadas a cada vez que um pedestre ou ciclista for assassinado por um veículo motorizado no acostamento.
Porém, estamos no Brasil. Essas empresas já contam com a conivência dos agentes públicos e da agência nacional de transportes para proibir o tráfego de ciclistas em certos trechos, dando-se o direito de apreender as bicicletas de quem desobedeça as regras que eles mesmos criam, por mais que essas regras estejam em desacordo com leis brasileiras. A vida nos espaços públicos é, cada vez mais, regida pela lógica privada. Não seria diferente em uma estrada.
Como no Brasil é comum que se escolha a solução estúpida, logo os gestores de estradas encontrarão a solução definitiva para o problema. Conseguirão que a lei federal seja alterada de forma a proibir definitivamente a presença de pedestres e ciclistas no acostamento.
O banimento de pessoas acontecerá em nome do extremo do individualismo: o direito de furar filas.
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