Trânsito parado, o motorista nervosinho começa a acelerar e buzinar loucamente. Desvia seu carro para a contra-mão e passa em alta velocidade furando a longa fila de automóveis. Quando é na estrada, faz isso usando o acostamento. Ao disputar uma posição para entrar novamente na fila, grita e gesticula com cara de ódio. Acelera agressivamente, fazendo com que o balanço do carro expresse sua raiva, e joga o veículo na frente dos outros. Se alguém reclamar ou tentar impedir sua manobra, é possível que esse doente mental saia de sua bolha de vidro e aço e venha ameaçar fisicamente quem fez isso, eventualmente dando tapas na lataria como forma de intimidação.
A cena é trivial para quem vive em áreas urbanas congestionadas. O nome disso em países onde se fala inglês é road rage, que traduzimos aqui por fúria viária. E o interessante é que, mais que ter um nome próprio, esse comportamento pode resultar em processo criminal em países como Reino Unido, Alemanha, Singapura e Austrália, provavelmente entre outros. Nesses lugares existe distinção entre condução agressiva ou perigosa, que é uma infração de trânsito, e os comportamentos de fúria viária, que são efetivamente tratados como crimes. Há países em que não há tipificação criminal específica para fúria viária mas a pessoa está sujeita a sofrer acusação pelas ofensas cometidas durante o surto.
Do ponto de vista clínico, a fúria viária não é classificada como transtorno mental, mas é tipicamente associada ao transtorno explosivo intermitente, um quadro comportamental caracterizado pela falta de paciência generalizada, com explosões de raiva e violência desproporcionais ao contexto.

Se ao ler a cena que abre esta matéria você imaginou um homem como protagonista do ataque de fúria, saiba que seu pensamento não foi preconceituoso. Estatísticas demonstram que a fúria viária é, sim, uma típica homice. Um estudo feito no Canadá em 2002 registrou que 96% dos casos de fúria viária retratados em jornais daquele país foram perpetrados por pessoas do gênero masculino. Fato curioso é que, entre as vítimas de fúria viária no estudo, homens eram também 96%. Interessante perceber como os instintos primatas de disputa por território encontram no trânsito um ambiente bastante inspirador.
O Código de Trânsito Brasileiro prevê infrações relacionadas à condução perigosa de veículos. Pena que os agentes fiscalizadores não considerem isso um problema relevante ou, pior ainda, talvez nem vejam nisso um comportamento fora do normal, saliente, e assim nem reparem quando esses gestos acontecem na sua frente. Um levantamento feito pela Associação Ciclocidade, com base em dados de fiscalização de trânsito em São Paulo, mostra que atos de condução perigosa raramente são punidos.
O levantamento considerou um total de 13.601.289 autuações, realizadas entre 2014 e 2017. Apenas para citar alguns exemplos, o enquadramento “Usar buzina prolongada e sucessivamente a qualquer pretexto” teve um total de 4.323 autuações durante esses quatro anos, o que corresponde a 0,031% do total de autuações. Gestos agressivos com o carro foram ainda menos percebidos pelos agentes. O enquadramento “Dirigir ameaçando os demais veículos” foi o motivo de apenas 1.937 autuações, ou 0,014% do total.
E para você, ciclista que já tomou várias vezes aquela fina educativa, aqui está um número pouco animador. A multa por “Deixar de guardar a distância lateral de 1,50m ao passar/ultrapassar bicicleta” foi aplicada, em quatro anos, apenas 40 vezes. Em números percentuais, precisamos ir até a quarta casa decimal para expressar o que isso representa no total de autuações: 0,0002%.