zero absoluto

O automóvel é um meio de transporte poluidor, ineficiente, barulhento e perigoso. Em grande quantidade, os automóveis atravancam a cidade e atrapalham a vida das pessoas que querem se deslocar ou simplesmente estar nela, usufruir dos encontros que ela proporciona.

Porém, por motivos econômicos, uma parte enorme do espaço da cidade foi tornada de uso exclusivo dessas máquinas. As vias urbanas são hoje dedicadas aos veículos motorizados.

Pessoas que se locomovem a pé, de bicicleta, cadeira de rodas, skate ou outros meios de mobilidade ativa estão banidas desses espaços. Foram segregadas às calçadas e perderam o direito de andar nas ruas.

As pessoas estão autorizadas a usar essas vias apenas nas faixas de pedestres, nas raríssimas ciclofaixas e nas ruas ocasionalmente fechadas para os carros, breves fantasias dominicais em que as cidades voltam temporariamente a ser das pessoas.

Tudo em nome do transporte individual motorizado, que é vergonhosamente ineficiente.

Mesmo em condições ideais, trafegando sozinho por vias livres, o automóvel tem uma eficiência energética muito baixa. A bicicleta, por exemplo, chega a ser 25 vezes mais eficiente que o automóvel. Um trem urbano com uma média de ocupação de apenas 20% da capacidade total é 7 vezes mais eficiente que o transporte individual motorizado.

Como dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço, numa cidade congestionada a velocidade média do automóvel pode ser de 15km/h ou menos, portanto inferior à velocidade média de uma bicicleta. Nesse ponto, a escolha do automóvel já é desvantajosa, pois gasta-se grande quantidade de energia e dinheiro para andar mais devagar que uma bicicleta.

Congestionamentos monstruosos são cada vez mais comuns. Neles, a velocidade média do automóvel cai ainda mais, ficando abaixo dos 5km/h, portanto mais baixa que a de uma pessoa caminhando. Ainda assim, há quem prefira estar em seu carro pois estará sentado, protegido do calor, do frio, da chuva e também das outras pessoas, tidas por muitos como incômodas ou ameaçadoras.

Por causa desses outros fatores, físicos e sociais, o automóvel ainda teria uma vantagem relativa, no julgamento de quem assim escolhe, mesmo andando mais devagar que uma pessoa caminhando.

Mas há momentos em que a fluidez desaparece completamente. Os automóveis ficam imóveis por vários minutos. Encurralados, estáticos como cristais de gelo.

Nesse momento, a eficiência do automóvel atingiu o seu zero absoluto.

Segundo os físicos, o zero absoluto seria a menor temperatura possível. Nele, a matéria sofre mudanças em suas propriedades.

Nas ruas também deve ser assim. No zero absoluto da eficiência, a supremacia do automóvel deve ficar totalmente abolida. As ruas voltam a ser das pessoas, elas recuperam o direito de andar e pedalar por onde quiserem.

A invasão deve ser total. Até porque, encurraladas, as máquinas são totalmente inofensivas.

Dá pra imaginar as caras delas.

— Era gente por todos os lados!

Que horror.

Se a baixíssima eficiência e velocidade do automóvel ainda não haviam sido suficientes, no zero absoluto a epifania é inevitável: o automóvel perde totalmente o sentido, a moral e o respeito como meio de transporte. Deixa de ser digno da imensa porção de espaço público que ocupa.

Situações de zero absoluto são apenas temporárias, é verdade. Logo o gelo derrete, as pessoas saem das ruas e em algum momento os motoristas chegarão aos seus destinos.

Amanhã o fenômeno se repetirá. Ainda estamos longe do ponto da virada.

Trabalham arduamente para que o tempo em zero absoluto seja cada vez mais longo a cada dia que passa. Perceba que pouco a pouco, com a ajuda de umas poucas leis da física, as ruas vão voltando a ser nossas.

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