Nem sempre o trajeto proposto pelos desenhistas e planejadores urbanos é o mais interessante para os usuários de uma infraestrutura. No nível da rua, cada um escolherá o trajeto que julgar mais fácil, mais seguro, mais curto, mais confortável.
A partir de milhares de decisões individuais, cada um com seus critérios, emerge um comportamento coletivo, que pode deixar marcas físicas na cidade. A foto mostra um caso em que o caminho praticado de fato por muitos ciclistas não coincide com o caminho proposto pelos planejadores.

Aqui coexistem duas possibilidades: a via pavimentada, criada de cima para baixo, e a trilha de terra aparente, que é de fato usada por muitas pessoas. São esses os fenômenos genuinamente de baixo para cima. Partem da prática, do uso real que milhares de pessoas fazem dos equipamentos urbanos. Isso é bastante comum também em praças ou áreas verdes, em que trilhas de terra abertas em meio à grama aparecem como alternativas aos caminhos pavimentados com cimento, placas ou bloquetes.
Ninguém combinou nada com ninguém. Ninguém escolheu aquele caminho porque alguém pediu ou sugeriu. As pessoas fazem aquilo simplesmente porque acham que é a melhor coisa a fazer. Com o tempo, várias pessoas fazendo a mesma escolha, o caminho começa a ficar marcado, visível. Nesse ponto ele já aparece como alternativa para quem passar ali pela primeira vez. Mas continua havendo uma escolha. Se o caminho de terra não for bom, as pessoas não vão querer percorrê-lo, e a trilha vai desaparecer. Porém, se for interessante, o caminho inovador será bastante usado e continuará marcado no chão. É muito comum que esses trajetos criados de baixo para cima acabem sendo oficializados, no momento em que recebem pavimentação.
O processo é semelhante a algo que acontece com as línguas naturais. Pelo uso diário nas interações, os falantes de uma língua criam palavras e construções inéditas. Inicialmente, ainda que elas sejam perfeitamente compreensíveis, elas são tidas como estranhas por alguns falantes, ou mesmo como erradas por pessoas com postura normativista. Mas quem decide se essas novidades permanecerão na língua ou serão esquecidas para sempre não são os professores, gramáticos e dicionaristas. São os falantes, milhares deles atuando em conjunto. Se eles acharem que essas palavras e construções são interessantes (úteis, claras, expressivas), eles continuarão usando. Com o uso, essas palavras e construções acabam se tornando comuns e naturais, até que acabam sendo incorporadas aos dicionários e gramáticas. Nesse momento, ninguém mais tem o direito considerá-las erradas, e é bastante questionável se esse direito algum dia existiu.
Seja na língua, seja nas cidades, é assim que funcionam os processos genuinamente de baixo para cima. São o resultado de milhares de decisões individuais sendo tomadas no momento da ação, cotidianamente. É essa a dinâmica da criatividade coletiva. Tentativas de ignorar ou mesmo contrariar esses processos, por meio de normas e proibições, nem sempre surtirão os efeitos desejados.
A implantação da infraestrutura cicloviária deve levar isso em consideração. Um processo amplamente participativo para a elaboração do projeto é fundamental, procedimento básico dentro de um sistema democrático. Porém isso não basta. Deve haver também abertura para usos concretos que eventualmente não estejam previstos no desenho inicial. Alguns tentarão chamar esses pequenos gestos divergentes de transgressões. Preferimos chamar isso de vida real. É o nível da rua tentando dar suas contribuições para aperfeiçoar o projeto.