amigos de rua

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Chego na praça e encontro pessoas que conheci exatamente ali. O que nos uniu inicialmente foi o vínculo com esse cantinho do bairro, o gosto por estar sob aquelas árvores, usando aqueles bancos e mesinhas do mobiliário urbano, enquanto as crianças brincam ou se ocupam catando gravetos para acender o fogo. Já temos um histórico de convivência, um repertório comum de assuntos, músicas e histórias hilárias.

Hoje, se é o caso de provocar um encontro, achar motivo é a parte mais fácil: algum aniversário de criança ou adulto, a fogueira nas noites frias e secas, uma cantoria para celebrar o solstício de inverno, aquela cerveja só porque a tarde está bonita. Mas os encontros não precisam de planos ou motivos para acontecer. Basta passar pela praça. Em certos horários, há grandes chances de ter alguém ali. Mesmo com tempo curto, não custa parar para dois minutos de prosa. Valeu gente, agora preciso ir lá, fui só no mercadinho comprar umas frutas, mas tenho que terminar de arrumar a casa e ainda reler um projeto que devo entregar hoje. Todos temos. Segue a vida.

São meus amigos de rua.

A distinção entre casa e rua aparece em teorias antropológicas, obras literárias e diversas culturas. Na vida diária, fui percebendo que pode se aplicar também às amizades. Há os amigos que vêm de casa e os amigos que vêm da rua.

Os primeiros são as amizades adquiridas nos círculos fechados, geralmente em locais privados: familiares, amigos de familiares, pessoas que nos foram apresentadas por amigos de escola ou infância, amizades formadas em ambientes de trabalho, cursos, condomínios, comunidades religiosas e outras situações particulares. Já os amigos de rua são aqueles que surgem da convivência comunitária, em espaços públicos e círculos abertos: pessoas que frequentam a mesma praça, companheiros do jogo de dominó ou baralho, do futebol nas praias e campos de várzea, conhecidos dos bares e rodas de samba, grupos de convivência no bairro.

É importante notar que não basta estarmos em um lugar público para o círculo ser aberto. Se há na praça uma festa de aniversário onde não conhecemos ninguém, esse ambiente está socialmente fechado, apesar de ser um local público ao ar livre. Quando existe a proposta de abertura, qualquer um pode chegar numa roda de maracatu, samba ou capoeira acontecendo na praça, participar se quiser e, ao final, seguir na conversa e passar a fazer parte daquele círculo. É a mesma diferença entre um grupo de pedal uniformizado e uma concentração na Praça do Ciclista, em que qualquer um pode sair pedalando junto e terminar no bar confraternizando com os novos amigos.

Foto: Dionizio Bueno

Há alguns anos eu lia bastante sobre redes sociais, e aqui me refiro às conexões entre pessoas, não às ferramentas e aplicativos digitais, como talvez você esteja pensando. Num desses textos, o autor propunha um exercício para entendermos de onde vêm nossas amizades, com o objetivo de identificar as pessoas que têm o perfil de conectoras. No exercício, você deveria pensar em cada pessoa que você conhece e anotar quem foi, entre seus amigos ou conhecidos, que te apresentou aquela pessoa (ou na festa de quem você conheceu aquela pessoa).

Ao fazer esse exercício, reparei que algumas pessoas das minhas relações não me haviam sido apresentadas por ninguém, eu simplesmente as conheci em ambientes sociais abertos. No esquema do autor do texto, essas pessoas ficaram sem lugar. As teorias sociais nem sempre se conseguem dar conta daquilo que vem da rua.

Uma amizade de rua não vale menos do que uma amizade adquirida a partir da sua rede social. É possível que os encontros com essa pessoa fiquem restritos à própria situação de praça ou bar, mas isso não significa que as conversas permaneçam em temas superficiais como futebol, horóscopo ou a frente fria que chega amanhã. Vocês podem vir a falar de assuntos mais íntimos, medos, desafios de seus relacionamentos afetivos. Poderão compartilhar as histórias de suas vidas, mesmo que continuem se encontrando somente lá fora.

É até possível que o espaço público como cenário da conversa facilite que as amizades atinjam outro nível de aprofundamento, livres que estão das expectativas relacionadas ao espaço da casa, às aparências, ao histórico com vínculos comuns, às obrigações sociais que pairam sobre nós.

Talvez somente as amizades de rua possam ser verdadeiramente livres. Elas já partem de um aspecto de proximidade entre as pessoas: seu gosto pelos lugares abertos, uma afinidade na forma de usar a cidade, a ausência de medo dos outros.

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