automobilização

Já se falou aqui sobre motoristas em bicicletas. Este episódio mostra mais um caso concreto.

Fazia eu tranquilamente o meu treino no campus da USP, em um circuito que criei com objetivos específicos. Há nele um único e curto trecho em leve ascensão, no qual a proposta é manter a cadência até o fim da subida, evitando perda de velocidade. Logo adiante a subida acaba e o treino volta ao nível normal de esforço.

Um speedeiro havia passado por mim um pouco antes e, por algum motivo, diminuiu bem o ritmo nessa pequena subida. Eu, seguindo o propósito do meu treino, mantive a velocidade e ultrapassei o rapaz mais ou menos no meio da subida.

Ele ficou injuriado.

Ao passar por ele, ouvi ele trocando duas ou três marchas assim que me percebeu. Alguns metros adiante ele me ultrapassou com velocidade, demonstrando nisso um enorme prazer, e logo adiante voltou a pedalar num ritmo normal. Em teoria, é até possível que o treino desse ciclista consista em esperar ser ultrapassado por alguém para, então, tornar a ultrapassar a pessoa, numa espécie de programa de sprints aleatórios. Acho pouco provável que seja isso. A única outra possibilidade que vejo para explicar o gesto é um lapso de infantilidade automobilística, típico de um moleque de 16 anos, apesar de o rapaz aparentar ter quase o triplo dessa idade.

Ser ultrapassado é algo humilhante para certos automobilistas. É assim que se formam as situações de racha, comuns em algumas avenidas da cidade e nas rodovias. Rachas diminuíram um pouco após a instalação de sensores de velocidade, ocorrida nos últimos anos. Mas ainda é possível vê-los, e há locais, dias e horários mais propícios a isso.

“Com o carro que eu tenho, não admito que me ultrapassem.” É o raciocínio por trás de uma arrancada reativa, que normalmente é feita por automóveis e que eu tive o privilégio de ver sendo feita por uma bicicleta há alguns dias. Se o outro corresponde, ambos passam a “apostar corrida”, como dizia a minha avó. Já estive próximo a pessoas que pensam assim e ouvi a frase acima, com pequenas variações, algumas vezes.

Em muitos filmes, os automóveis ganham traços humanos: olhos, expressões faciais, emoções, vontades. Isso se chama personificação. A cena aqui relatada parece exemplificar uma transferência de traços em sentido inverso: automobilização. Uma pessoa, neste caso uma pessoa em bicicleta, adquire comportamentos de um automóvel. Pouco agrega aqui argumentar que um automóvel é sempre guiado por uma pessoa, e tal, e que portanto o comportamento do automóvel vem, em última instância, de um humano.

É preciso ir além do óbvio. É preciso perceber que, ao estabelecer certos tipos de situação e de relação, o automóvel cria as condições para determinados comportamentos. Um deles é o da competitividade social explícita, como em um racha, especialmente considerando que dinheiro pode comprar potência. Às vezes o que está em jogo é também a habilidade de pilotagem, mas a competitividade ainda se dá através do veículo. No caso do ciclista, entra o fator força física, e um veículo continua na cena, ainda que não motorizado. Mas com que frequência vemos alguém andando pela cidade desafiar um desconhecido para uma disputa de braço-de-ferro, só para medir quem é mais forte? Ou mesmo para uma corrida até o próximo quarteirão só para demonstrar quem é mais rápido?

Corridas esportivas existem, tanto no ciclismo como no automobilismo, ainda que o caráter esportivo seja um tanto discutível no caso do automobilismo. São modalidades onde o objetivo é, naturalmente, a competição. Podem ser bastante divertidas e benéficas ao canalizar energias, propósitos e trazer desenvolvimento físico e pessoal para o praticante.

A competitividade gratuita e explícita nas ruas é que soa um pouco estranha, pelo menos dentro do patamar civilizatório no qual acreditamos viver. Parece mais um resquício do chamado estado de natureza, que o automóvel tanto insiste em conservar no nosso modo de vida urbano contemporâneo.

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