mobilidades e ironias

Por meio de uma extensa rede mundial de transportes, um vírus sai de uma longínqua região no oriente, faz conexão na Europa e desembarca em São Paulo, em meios sociais abastados. Graças à mobilidade social existente no Brasil, logo atinge pessoas com menos recursos.

Para conter a mobilidade do vírus, é preciso desativar o sistema de transportes pelo qual ele se dissemina: as pessoas são orientadas a parar de se deslocar. Pedem que todos parem de sair de casa e mesmo de trabalhar. Alguns são apenas aconselhados, outros são compelidos a parar. O trabalho é um importante gerador de deslocamentos. Suspendendo o trabalho, cortam-se os deslocamentos pela raiz. Acontece que não funciona da mesma forma para todos.

Também no que se refere à mobilidade, o sistema de produção capitalista não é equânime. Alguns podem parar, outros não podem. Alguns podem trabalhar sem sair de suas casas, outros não podem. Continuarão expostos ao contágio.

No telejornal do horário nobre, matérias de caráter formativo ensinam as pessoas a se adaptarem à nova condição. Mostram patroas exemplares, que dispensaram temporariamente suas funcionárias e continuam “pagando tudo direitinho”. Nem todas essas trabalhadoras, entretanto, foram dispensadas.

O mesmo acontece no chão de fábrica, na linha de frente dos chamados serviços essenciais e no setor de entregas domiciliares, seja de encomendas, para que o comércio continue funcionando, seja de alimentos, para aqueles que têm condições para tal poderem almoçar sem ter que cozinhar nem circular.

Parques públicos são lugares onde, pelo menos nesta fase sem restrição total, as pessoas poderiam aliviar parte do mal estar causado pelo confinamento, poderiam tomar sol para fortalecer o sistema imunológico. Por serem locais abertos e amplos, dificilmente gerariam aglomerações e os perigos dos ambientes com pouca ventilação. Com tanta orientação para ficar em casa, só iriam as pessoas que realmente estão precisando dar uma volta (o que quer que seja isso). Porém, são geradores de deslocamentos e, portanto, estão fechados por tempo indeterminado. Aqueles que realmente estão precisando (o que quer que seja isso) sair acabam saindo de casa do mesmo jeito e ficam nas calçadas e praças, talvez mais próximos dos outros do que estariam nos parques.

O setor privado, sempre sedento por cortar custos, jamais perderia uma oportunidade como essa. As organizações particulares do ramo da educação, que vêm investindo pesado no ensino a distância e trabalhando arduamente para tornar o professor uma forma obsoleta de mão de obra, ganharam um motivo perfeito para obrigar todos os alunos, mesmo aqueles que tinham resistência, a provar das delícias de ter aula sem sair de casa. Num dia futuro, quem observar a curva de adoção do sistema de EAD verá um salto nestes tempos, e o processo de adoção como um todo será abreviado. Bancos gostam de dinheiro mas nem tanto das pessoas que vêm com ele. Estão rindo sem parar. A política de redução dos serviços presenciais, que já vinha sendo implementada há alguns anos, ganha um impulso pelo qual nenhum CEO esperava. Agências fechadas arbitrariamente, horários restritos, atendimento telefônico funcionando com quadro reduzido de agentes humanos. Queridos clientes, virem-se e resolvam pela internet ou pelo aplicativo. E a publicidade arremata: Tudo isso é porque a gente se preocupa com a sua saúde.

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De volta às ruas, vemos uma outra cidade. Com as restrições de circulação, as vias ficam praticamente vazias. O transporte motorizado sobre pneus, que em condições normais é uma fonte inesgotável de aborrecimentos, passa a funcionar estranhamente bem. Motoristas que por algum motivo precisam circular têm sua fantasia rodoviarista temporariamente concretizada: Ah, se todos saíssem da minha frente! E no sistema de transporte por ônibus tem-se uma amostra de como seria circular apenas por vias segregadas, sem a interferência dos automóveis. Quem precisou circular de ônibus nestes dias pôde experimentar como seria uma cidade em que o transporte coletivo não fosse impedido de fluir por políticas viciosas de incentivo ao transporte individual.

Pessoa nenhuma escolheu ser o veículo de um microorganismo nocivo. Qualquer um pode aproveitar esses momentos de normalidade suspensa para olhar a vida ordinária com algum afastamento e se questionar se o estranho está aqui ou está lá.

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