ruas de viver

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Elas existem. Apesar de serem hoje relativamente poucas, ainda é possível encontrar ruas de lazer na cidade. Nelas, aos domingos e feriados o tráfego de automóveis fica proibido e a via se torna um espaço livre para as pessoas.

Na infância, eu ficava bastante impressionado quando, em certos lugares da cidade, encontrava aquelas placas raras de sinalização, onde se lia RUA DE LAZER. Como na época elas não tinham o símbolo ‘proibido automóvel’, precisei de ajuda para entender o que eram. Meu pai explicou que ali, aos domingos, não podia passar carro, e as crianças podiam brincar à vontade. Naturalmente, achei aquilo incrível. Mas, com o tempo, fui deixando de ver essas placas pela cidade, cheguei a pensar que elas não existissem mais.

Imagem: reprodução

Em 1977, um ano após terem sido criadas, havia 80 ruas de lazer na cidade. Em julho de 1981, o número havia caído para nove. Hoje, segundo o mapa das ruas de lazer mantido pela prefeitura, há 63 ruas de lazer ativas. Esse número é bem pequeno em comparação com o fim da década de 1970, ainda mais se levarmos em conta o enorme crescimento que a cidade teve neste período.

Observando o mapa, notamos que não há ruas de lazer ativas na região central e nem na zona oeste. De início duvidei da precisão das informações do mapa. Ele poderia, no mínimo, estar desatualizado (de fato, indica que seus dados são de fevereiro de 2020). Fui conhecer de perto três ruas de lazer na região da Vila Mariana.

A primeira delas era uma rua residencial de apenas um quarteirão nas proximidades da UNIFESP. Em um dos lados da rua, diversas casas muito bem cuidadas. Ali definitivamente não parece um local barato de se morar. É verdade que o sol estava forte quando cheguei ao local, mas chamou-me a atenção o fato de haver apenas uma pessoa na rua – uma senhora na calçada conversando com a vizinha, que por sua vez se encontrava dentro de casa.

Foto: Dionizio Bueno

Havia também um grupo de familiares na varanda de uma das casas – dentro do espaço privado, portanto. Do lado oposto ao do casario mencionado, tapumes de uma construtora ocupavam praticamente o quarteirão todo. Logo devem começar as obras de um imenso prédio, o que vai tornar o local desagradável, barulhento e cheio de poeira de obra.

Atualmente, as ruas de lazer são regulamentadas pelo decreto nº 55.684/2014. Podem ser implantadas, mediante requerimento dos moradores, em vias públicas com trânsito de veículos de baixa intensidade, nas quais não haja hospitais, estabelecimentos comerciais, linhas regulares de ônibus, feiras livres e outros, conforme lista existente no decreto.

Uma vez deferido o requerimento, deve ser formado o Conselho da Rua de Lazer, composto por dez moradores, sendo um deles o coordenador. É ele que receberá da Secretaria Municipal de Esportes e Lazer (SEME) os cavaletes para fechamento da rua. A Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) faz a instalação da sinalização vertical fixa que orienta os motoristas. Uma rua de lazer pode ser desativada a pedido dos próprios moradores ou por decisão da SEME, na hipótese de descumprimento das regras ou em razão de interesse público.

Foto: Dionizio Bueno

Na década de 1970, o período de fechamento ia das 8h às 18h. Posteriormente, quando vigorou decreto nº 38.872/1999, as ruas de lazer ficavam fechadas ao tráfego motorizado das 9h às 17h. A partir do decreto de 2014, essas ruas ficam livres para as pessoas apenas das 10h às 16h.

Nas outras duas ruas de lazer que visitei, o cenário era bem diferente da primeira. Mesmo com o sol forte, havia pessoas na rua. As crianças andavam de bicicleta, jogavam bola e corriam. Enquanto isso, os adultos conversavam em volta de mesas na sombra ou sentados no chão, na calçada ou na rua. Ambas estão localizadas junto a comunidades de menor poder aquisitivo, e talvez isso esteja relacionado com essa diferença na forma como usam o espaço público.

Foto: Dionizio Bueno

Em seu trecho mais alto, a avenida José Maria Whitaker é estreita e tem pouco tráfego. Em um de seus quarteirões, aos domingos e feriados, as pessoas ocupam a rua e podem viver sem medo de serem atropeladas. Só fato de não ter carros passando, emitindo barulho e fumaça, torna muito mais agradável o simples gesto de sentar no chão ou em uma cadeira de praia e apenas ficar observando a vida na rua. Quando os pneus dos automóveis deixam de ocupar o asfalto, ele fica livre para receber triciclos infantis, bolas, traves de futebol, tabuleiros de jogos.

Foto: Dionizio Bueno

Brincar é parte importante do desenvolvimento da criança, é o exercício físico que elas fazem naturalmente, sem necessitar como nós, adultos, de uma situação delimitada para a prática, com técnicas, equipamentos e às vezes instrutores. No aspecto relacional, é onde aprendem a socializar, conviver, negociar e ceder. Até porque, quem não sabe ceder possivelmente tem maiores chances de continuar uma criança mimada até a vida adulta. As habilidades cognitivas e motoras praticadas durante as brincadeiras são bastante úteis na vida escolar, tendo reflexos no desempenho do aluno.

Em seu artigo 16º, o Estatuto da Criança e do Adolescente afirma que o direito à liberdade compreende a possibilidade de “ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários” e também de “participar da vida familiar e comunitária” (grifos meus). Numa cidade que, especialmente nas regiões mais populosas, é tão carente de praças, parques e outros equipamentos públicos voltados para a convivência, ruas de lazer são uma solução efetiva, de implantação rápida e simples e de baixo custo para a prefeitura.

É preciso lembrar também de como as ruas livres de carros são benéficas para os adultos. Não apenas pela possibilidade de estarem despreocupados enquanto as crianças brincam no meio da rua, mas também pelas experiências que elas trazem a eles mesmos. Ali é possível conhecer vizinhos, reforçar vínculos, conversar sobre temas do próprio bairro, compartilhar alimentos e bebidas em mesas coletivas.

Resumindo: viver. Quando os automóveis desocupam os espaços públicos, as pessoas se aproximam, as comunidades se fortalecem. Somos tão acostumados à onipresença de veículos motorizados que nos esquecemos de como é a vida sem eles. É intrigante como pode haver somente 63 ruas de lazer ativas em uma cidade tão grande.

Morar em um quarteirão que uma vez por semana fica cheio de gente e vida pode parecer algo que qualquer um deseja, mas infelizmente nem todos pensam assim. Já em 1981, uma reportagem relatava o descontentamento de alguns moradores: “o dia de lazer se transformou em obrigação de divertimento, e a irritação dos moradores, que precisavam acordar cedo para retirar seus carros da rua, superou a expectativa de diversão”.

E enquanto a unanimidade está longe de existir, o conceito de maioria também vem mudando ao longo dos anos, pelo menos na regulamentação das ruas de lazer. Conforme o decreto nº 38.872/1999, a solicitação de implantação deveria vir acompanhada de um abaixo-assinado com, no mínimo, dois terços (66,7%) dos moradores do trecho em questão. O decreto nº 55.684/2014, que substituiu o anterior, passou a exigir assinaturas de 80% dos moradores do local.

Além disso, o decreto de 2014 introduziu a necessidade de um recadastramento, no qual os moradores devem apresentar, a cada ano, um novo abaixo-assinado confirmando o interesse em manter a rua de lazer (o texto do decreto não especifica o percentual de moradores necessário no abaixo-assinado do recadastramento).

Na terceira rua de lazer que visitei, o cenário era semelhante ao da segunda. Localizada na Vila Mariana, esta rua de lazer conta ainda com uma pracinha simpática e sombreada em uma de suas extremidades.

Foto: Dionizio Bueno

Apesar do sol forte, havia crianças e adolescentes brincando na rua, andando de skate ou bicicleta, ou simplesmente correndo. Um rapaz usava a rua para dobrar um material que parecia ser um grande brinquedo inflável, recém desmontado.

O caminho para ter uma rua de lazer perto de casa começa com uma mobilização da vizinhança. É preciso buscar, mais que uma maioria necessária de assinaturas, um consenso entre os moradores quanto ao que se pretende. Esse movimento, por si só, já é benéfico por provocar conversas entre vizinhos. Deve-se também encontrar pessoas dispostas a fazer parte do Conselho, que exige algum comprometimento com questões comunitárias locais. A formalização da solicitação é feita na subprefeitura, pela entrega do abaixo-assinado e da lista de nomes que vão compor o Conselho.

Assim, a existência de uma rua de lazer não depende apenas de um parecer favorável dos órgãos competentes e da canetada de uma autoridade. É preciso também de um grupo mobilizado de moradores, dispostos a colocar os cavaletes a cada domingo e zelar pelo cumprimento das regras e conservação dos materiais. Ou seja, é preciso que aquela comunidade de moradores realmente queira aquilo, pois dá trabalho. Assinar um abaixo assinado pedindo o fechamento é a parte fácil. O que mantém viva a rua de lazer é um trabalho contínuo do Conselho e, sobretudo, a presença regular da vizinhança no espaço público. É a vivacidade comunitária que reforça o consenso em favor da rua de lazer, diminuindo o peso de forças contrárias.

Considerando o grande número de ruas elegíveis para serem fechadas aos domingos e a relativa simplicidade burocrática do processo, o pequeno número de ruas de lazer causa um certo espanto. Podemos ver as 63 ruas de lazer hoje ativas como importantes focos de resistência da vida comunitária.

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