sossego à venda

Uma importante estratégia da sociedade de consumo para gerar demanda é tirar das pessoas algo que elas têm por natureza para depois vender de volta a elas.

Tira a saúde, oferecendo cidades poluídas e uma vida semelhante a uma corrida de ratos, enchendo as pessoas de depressão e câncer, e então vende planos médicos, remédios caros e cirurgias de ficção científica. Tira o silêncio e o ar puro, com cidades saturadas de automóveis, para depois vender casas em bairros isolados ou condomínios em áreas afastadas e municípios vizinhos, contribuindo com a metástase urbana. Tira a comunidade e o espaço público, fazendo com que as pessoas tenham medo umas das outras, e depois oferece salões para festas infantis, shopping centers e antidepressivos.

Agora a wazificação dos motoristas está acabando também com o sossego que antes existia nas vias locais. Seja porque de fato desconhecem o caminho, seja porque vivem tentando ganhar segundos de vantagem em trajetos espertos, seja simplesmente porque gostam da companhia do brinquedo, os motoristas estão se transformando em cumpridores de ordens dadas por máquinas. O resultado é que, graças aos aplicativos de navegação por satélite, ruas que antes recebiam tráfego motorizado apenas de moradores e pessoas da vizinhança estão virando rotas alternativas e recebendo tráfego intenso. Especialmente em alguns horários do dia, são invadidas por filas de automóveis que estão de passagem e antes usavam vias coletoras ou arteriais da região.

Uma vez que determinada rua local é percebida pelo algoritmo como mais rápida, o programa colocará essa rua no trajeto e mandará os carros para lá. Os motoristas obedecerão. Nesse momento, acabou o sossego, o silêncio, o som dos passarinhos, a brincadeira das crianças na rua, a conversa de vizinhos em frente de casa. Pelo menos em princípio, isso acontece tanto em bairros ricos como em bairros pobres pois, teoricamente, o programa avalia cada via apenas com base nas informações de velocidade média e incidentes notificados. Porém, talvez outros parâmetros atuem ou venham a atuar na escolha de ruas feita pelo aplicativo.

Já faz alguns anos que a onipresença dos mecanismos de busca trouxe ao debate jurídico o tema do direito ao esquecimento. Se uma pessoa esteve envolvida em algum episódio difamatório que tenha sido muito noticiado, alguém que pesquise seu nome mesmo dez ou vinte anos depois continuará encontrando essas mesmas notícias. Com base no direito ao esquecimento, por meio de ordem judicial, a pessoa pode conseguir que o Google deixe de apresentar no resultado das buscas as notícias envolvendo seu nome.

Isso é possível porque os resultados das buscas são afetados por dados presentes na base que descrevem as informações que estão lá, orientando o processo de busca. Por meio de uma simples alteração desses dados, é possível fazer com que uma página eletrônica passe a ser ou priorizada nos resultados da busca (quando o interessado pagou pela visibilidade de uma marca, por exemplo) ou rebaixada na lista e mesmo omitida (quando existe determinação para isso, por exemplo, páginas com conteúdo pornográfico). O fato é que o resultado de uma busca não é determinado apenas pelas palavras ou expressões solicitadas pelo usuário. Há outros dados atuando.

Um processo semelhante no banco de dados de ruas pode fazer com que uma via deixe de ser escolhida pelo algoritmo que monta os trajetos. Tecnicamente, isso é tão simples de fazer como tirar uma determinada página do resultado das buscas. A gigante Google é também dona do Waze e dos dados fornecidos por todos os usuários durante sua navegação com o aplicativo. Exceto por umas poucas restrições legais, e sujeita a eventuais ordens judiciais específicas, essa corporação atua com poucos limites no mercado, perseguindo agressivamente seus interesses econômicos.

Tudo em nossa sociedade, em algum momento, passa a ter um preço. A visibilidade já tem seu preço. Anúncios em mecanismos de busca e impulsionamento de mensagens em redes sociais são serviços já bastante triviais, com tabelas de preço abertas, considerados legítimos (e é curioso como muita gente continua acreditando no mito da imparcialidade). Se é que já não existe em circuitos mais restritos, é bastante provável que dentro de poucos anos venha a existir uma tabela oficial com o preço do esquecimento, assim como já acontece com o preço da visibilidade.

O mesmo vale para o esquecimento de ruas, que funciona de maneira igualmente simples, do ponto de vista técnico. Imagine que formidável. Muda-se um parâmetro de uma rua na base de dados e, dez minutos depois, os automóveis magicamente desaparecem dela!

Seja pela via jurídica, que implica altos custos advocatícios, seja pelo pagamento direto de um serviço, no momento em que o esquecimento tiver um valor de mercado assim como a visibilidade já tem, o sossego que havia sido expropriado pelo aplicativo pode finalmente ser comprado de volta.

A partir do momento em que um banco de dados e um programa de computador controlam diretamente os movimentos das pessoas (que apenas executam instruções), os padrões de deslocamento e de ocupação das vias da cidade passam a estar sob um controle centralizado. Sendo o controlador uma organização privada com interesses econômicos, o sossego passa a ter um preço e estará disponível, naturalmente, para aqueles que puderem pagar por isso.

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