nada a perder

O fato de estar dentro de um automóvel influencia, de várias maneiras, a forma que a pessoa tem de ocupar o espaço e se relacionar com os outros.

Imagine um automóvel que segue por uma via de três faixas. Esse motorista precisa virar à direita na próxima esquina, portanto deveria já estar na faixa da direita. Porém, como a faixa da esquerda está fluindo mais, ele ainda está na faixa da esquerda. Quando chega o momento de fazer a conversão, ele não hesita: reduz a velocidade, disputa e ocupa uma posição na faixa central, aí ele freia mais ainda a ponto de parar, obstruindo a faixa central, espera que algum motorista da faixa da direita lhe dê passagem, o que também bloqueará a faixa da direita, e finalmente faz a conversão.

Tente imaginar se o mesmo comportamento seria possível para alguém que está numa bicicleta ou mesmo numa moto. Seria impossível atravessar duas faixas com aquela enxurrada de automóveis. A pessoa teria que seguir adiante até a próxima esquina, ou aguardar por um retorno, para então fazer a conversão estando numa posição mais apropriada.

Para um motorista guiado pelo bom senso e pelo respeito às outras pessoas, essa seria também a atitude mais razoável. Esse motorista entende que foi ele que fez uma aproximação inadequada e que não tem o direito de fazer os outros pararem por causa disso. Ele reconhece o erro, e portanto vai consertá-lo assumindo o ônus disso: segue até a próxima travessa ou espera pelo retorno.

Porém, dentro de um carro, ele não tem nada a perder.

Ele sabe que os outros motoristas terão interesse em evitar a colisão e pararão para que o príncipe possa passar. O mesmo acontece com as mudanças bruscas de faixa, conhecidas como fechadas. Os outros que freiem! Talvez eles buzinem ou xinguem, mas o espertão consegue o que quer. E, se não der tempo de frearem e acontecer a colisão, qual o pior que pode acontecer? Talvez desmarcar a terapia ou o personal trainer de amanhã cedo para poder fazer a vistoria na seguradora, ou chegar atrasado ao trabalho sabendo que o chefe será compreensivo, afinal estamos todos sujeitos a esses acidentes, não é mesmo?

Para ciclistas e motociclistas, manobras irresponsáveis como essas ficam marcadas em seus corpos, caso eles continuem a existir.

Ao proteger fisicamente o motorista das consequências de seus atos, o automóvel favorece atitudes individualistas de desrespeito àqueles com quem se compartilha o espaço público. Só mesmo quem vive muito atento às regras de convivência, comportamento que no Brasil é qualificado com o adjetivo pejorativo ‘caxias’, age com bom senso e respeito aos outros, apesar de todas as proteções que o automóvel oferece.

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