país da terra dura

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Faz pouco mais de dois anos que voltei a morar aqui. Retorno inesperado e às vezes confuso aos territórios da infância. O sonho de morar a alguns quarteirões da escola do meu filho e o desligamento de uma relação de trabalho diário na Paulista me fizeram rever promessas e cá estou, de novo, no Butantã.

Como qualquer bairro, aqui tem seus cheiros elementais. Tem fogo na madeira das pizzarias se preparando para abrir e nas infalíveis churrasqueiras dos domingos; tem a água da mangueira regando os jardins nas manhãs de sol e da chuva que vem e para; o vento chega de lugares distantes e traz aromas da Serra do Mar ou do Planalto Central; a terra molhada ou seca, sempre com seu verde, goiabas maduras pelo chão, damas-da-noite e jasmins.

Uma neblina densa, também cheirosa, continua descendo em raras manhãs por ano e me lembra de cenas distantes do momento de ir para a escola, anos oitenta. Na época, essa neblina parecia ser mais frequente. Seria isso efeito de mudança climática ou da ilha da edição que é a memória?

São Paulo vista do Butantã em uma manhã de neblina leve. Foto: Dionizio Bueno.

Dizem que o País da Terra Dura sempre foi local de passagem. Em tempos recentes, é acesso às terras nos municípios do canto oeste da Região Metropolitana. Aqui se encontram os caminhos do Paraná (rodovia Raposo Tavares), de Santo Amaro (avenida Morumbi), de Itu (avenida Corifeu) e tantos outros. Foi rota de tropeiros, bandeirantes, jesuítas. Na Fonte do Peabiru, gente que viajava para bem longe parava para saciar a sede, encher os cantis, tomar banho em sua banheira de azulejos.

Em tupi antigo, yby é ‘terra’ e ãtã é o adjetivo ‘duro’. Na hipótese mais aceita, yby-ãtã-ãtã (a duplicação de um adjetivo tem efeito gramatical de intensificador) é ‘terra muito dura’, Butantã.

Antes o Butantã era para mim destino, geralmente para encontrar a família. “Hoje é dia de almoçar no País da Terra Dura”, eu costumava dizer. Agora passou a ser origem dos meus deslocamentos. Como moro na beira de uma estrada, a SP-312, ela naturalmente se tornou meu caminho da roça, a principal rota de acesso à cidade vizinha. Rapidamente me acostumei à ponte Eusébio Matoso, que antes eu evitava e agora considero das mais tranquilas de atravessar.

Hoje meu pai já não está mais aqui para eu lhe contar dos meus caminhos.

Há mais prédios, muitos prédios. Mas ainda há no País da Terra Dura importantes casas, quarteirões, vizinhanças, histórias que seguem de pé. De todos os ângulos, as visões da caixa d’água continuam me fascinando.

Aqui encontro amigos ao acaso quando caminho até a padaria ou o mercado. Aqui tem fogueira na praça, samba de mesa, maracatu, boi do Maranhão, roda de coco, bar com mesa na rua, kafta no pão com vinagrete, sopaipillas chilenas e, claro, caldo de cana e pastel nas feiras.

E os sons da vida, sempre. Panela de pressão no fogo, portão que abre rangendo, maritacas berrando a tarde toda, um vizinho pede que apaguem a luz, crianças brincam, apita o amolador de faca, vovó continua regando o jardim.

Enquanto eu puder sustentar o céu, firmo sobre esta terra dura.

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